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Dia: 20 de Setembro, 2018

20 de Setembro, 2018 Carlos Esperança

O primeiro auto de fé em Portugal

Há certamente na longa sequência do ADN um qualquer gene da crueldade que molda o cromossoma humano, mas ninguém faz o mal com tanto entusiasmo e tamanha alegria como quem tem uma fé à prova da clemência e uma devoção que exonera a compaixão.

Das instituições que levaram a perversão a maiores requintes, a tortura a mais elevados níveis e o êxtase pelo sofrimento alheio a um grau de felicidade tamanho, destaca-se a Inquisição, essa máquina sinistra para matar hereges, bruxas, judeus, não deixando sem castigo a adivinhação, a feitiçaria ou a bigamia.

Em Portugal, foram os santos frades dominicanos que entusiasticamente se dedicaram à incineração dos vivos e à exaltação criativa para ampliar e prolongar o sofrimento, para maior glória de Deus e purificação das almas dos réprobos.

Na Península Ibérica assistiu-se a esta curiosidade sinistra, países onde a Reforma nunca chegou, motivo do atraso dos seus povos, mas que exigiram a Inquisição, o instrumento mais cruel da Contrarreforma. Era a piedade dos reis que via nos padecimentos de quem não seguisse a religião verdadeira, ou quem pecasse contra ela, a forma de assegurarem a viagem para o Paraíso.

O primeiro auto de fé, em Portugal, teve lugar em Lisboa, no Ano da Graça de 1540, no dia 20 de setembro.

Foi há 478 anos.

Aqui fica a imagem que documenta esse ato de pia barbárie. 

20 de Setembro, 2018 Carlos Esperança

Direitos Humanos e tradição

Quando vejo invocar a tradição, como argumento para qualquer iniquidade, apetece-me sacar da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) que a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas proclamou em 10 de dezembro de 1948, ainda com a tímida designação de Direitos do Homem, e o rancor das madraças e sacristias que lhe denunciavam o pendor ateu. Já eu sabia ler.

Foi em 1893, no dia de hoje, apenas 55 anos antes, que a Nova Zelândia foi o primeiro país a ‘permitir’ o voto das mulheres (JN, hoje, Efemérides, pág. 51). Repare-se no verbo, como se um direito, embora inédito, fosse uma autorização, uma concessão, um consentimento masculino que deixava de proibir o que Deus tinha por desígnio.

Refiro o direito que então foi ‘concedido’, não para exultar com a ‘generosidade’, mas para execrar a iniquidade da demora. Não foi pequeno o salto civilizacional do facto, o seu pioneirismo, a abertura para a igualdade que ainda hoje não está conseguida, mas é motivo de reflexão tão tardia marcha para a civilização.

Que preconceitos atávicos, que raio de tradição, ou devoção, levou a que se perpetuasse a infâmia, a que metade da Humanidade fosse afastada dos direitos humanos?

Que caminho será preciso ainda percorrer para que a moral das sociedades patriarcais da Idade do Bronze seja erradicada do Planeta?

Quando me justificam as iniquidades com a tradição apetece-me esfregar nas ventas dos argumentadores a DUDH, e quando me dizem que é a vontade do Deus que os patriarcas inventaram, para benefício dos homens, apetece-me abrir-lhe a cabeça com os livros sagrados com que ofendem, humilham e exploram metade da Humanidade.

Maldita misoginia.