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Dia: 11 de Maio, 2014

11 de Maio, 2014 Ludwig Krippahl

Treta da semana (passada): Olavo de Carvalho.

De vez em quando, acusam-me de desprezar a filosofia. É falso. Eu acho que a filosofia é uma disciplina importante e uma peça crucial na procura de conhecimento. Não se consegue esclarecer nada sem pensar com clareza, especificar bem os termos e encontrar as distinções relevantes. Mas prezar a filosofia não é o mesmo que prezar tudo o que se diz ser filosofia. Há umas semanas, partilharam comigo este vídeo de um defensor do cristianismo, conservador, e alegado filósofo Olavo de Carvalho (1). Contornando a forma como o argumento é apresentado, ignorando uma série de disparates e reduzindo-o ao essencial, Carvalho propõe que é mais fácil acreditar que Jesus foi mesmo a encarnação terrena do criador do universo porque o que está relatado nos evangelhos é um facto.

Mas talvez estivesse num dia mau quando gravaram este vídeo e não é justo julgá-lo apenas pelo que aparentou ser nesse episódio menos feliz da sua carreira filosófica. Por isso, fui procurar outros exemplos. Textos escritos, onde a prosa é mais ponderada e se evita o “cêtáentenden?” a cada três palavras. Por exemplo, criticando ateus como Dawkins e Dennett, Carvalho afirma que «você só pode discutir a existência de um objeto previamente definido se o discute conforme a definição dada de início e não mudando a definição no decorrer da conversa, o que equivale a trocar de objeto e discutir outra coisa. Se Deus é definido como onipotente, onisciente e onipresente, é desse Deus que você tem de demonstrar a inexistência»(2). Há aqui um erro categórico fundamental que qualquer respeitador da filosofia deveria evitar. Não se discute o objecto nem se define o objecto. O que se define é um conceito e o que se discute é a hipótese desse conceito corresponder a algum aspecto da realidade. Parece uma distinção desnecessária mas, em filosofia, estes detalhes são importantes.

Se seguíssemos a regra que Carvalho propõe, então ninguém poderia rejeitar a existência do “deus esparguete voador que existe”. Se alguém o fizesse estaria a discutir outra coisa que não este deus esparguete voador que, por definição, existe. Obviamente, essa regra é um disparate. Se percebermos que a definição não é do deus esparguete em si mas apenas de um conceito e que o que está em causa é a hipótese desse conceito corresponder a alguma coisa real, então é evidentemente legítimo rejeitar essa hipótese em favor da alternativa de que este conceito é meramente fictício e não corresponde a nada de real. Cêtaentenden? Passa-se o mesmo com as conversas acerca de qualquer outro deus. Carvalho defende que há um «Deus onipotente, onisciente e onipresente» que podemos conhecer «apenas como fundamento ativo da nossa própria autoconsciência, maximamente presente como tal no instante mesmo em que esta, tomando posse de si, se pergunta por Ele.» Também aqui é legítimo, e não é «trocar de objeto e discutir outra coisa», considerar que esta alegação não corresponde à realidade por esse tal Deus ser apenas um personagem fictício de algumas histórias antigas. Carvalho alega também não se poder concluir que Deus não existe porque «Longe de poder ser investigado como objeto do mundo exterior, Deus também é definido na Bíblia como uma pessoa […] que mantém um diálogo íntimo e secreto com cada ser humano». Confunde novamente o que está em causa. O primeiro passo não é analisar esse Deus assumindo essa definição. Antes disso é preciso decidir se há alguma justificação para considerar que essa definição corresponde a alguma entidade real. Não há. Daí o ateísmo.

Noutro texto, Carvalho começa por alegar que «Quem quer que saiba o que é lógica tem a obrigação de saber também que, se a demonstração da existência de Deus pode ser difícil, a da Sua inexistência é absolutamente impossível.»(3) Na verdade, quem quer que saiba o que é lógica tem a obrigação de saber duas coisas mais fundamentais. Primeiro, que a facilidade ou impossibilidade de demonstrar algo logicamente depende totalmente dos axiomas de onde se parte. E, em segundo lugar, que a demonstração lógica apenas garante a consistência formal com os axiomas escolhidos e não nos diz nada acerca da realidade. Por exemplo, se ignorarmos a viscosidade do ar e a turbulência, podemos demonstrar logicamente que é impossível uma abelha voar. Para a abelha, a conclusão é irrelevante.

Pela incapacidade de disfarçar estes erros crassos, suspeito que o Olavo de Carvalho não seja um filósofo muito conceituado fora do seu grupo de seguidores no Facebook. No entanto, estes erros de confundir a definição de um conceito com os atributos de algo real e de julgar que uma demonstração lógica garante que a conclusão corresponde à realidade estão na base de quase todos (se não todos) os argumentos em suporte da existência de Deus que passam por filosóficos. O desprezo que sinto e manifesto por esse tipo de argumentos não vem de qualquer desprezo pela filosofia. Pelo contrário. É precisamente o apreço que tenho pela filosofia que me torna avesso a tais imposturas.

1- O Olavo de Carvalho tem um curriculum variado. Alguns exemplos: «Colaborou no primeiro curso de extensão universitária em astrologia na PUC de São Paulo para os formandos em psicologia em 1979. Aproximadamente na mesma época, realizava consultas astrológicas e lecionou na Escola Júpiter, escola de astrologia em São Paulo que chegou a receber 140 alunos. […] Além da manutenção periódica da página pessoal com novos artigos e ensaios, Carvalho ministra, com certa frequência, cursos à distância de Filosofia». Mais em Olavo de Carvalho.
2- Olavo de Carvalho, O deus dos palpiteiros.
3- Olavo de Carvalho, A chacota geral do mundo

Em simultâneo no Que Treta!

11 de Maio, 2014 José Moreira

A idade não perdoa…

Oa anos vão passando, e Deus sente-se sem forças. Segundo os especialistas da Bíblia, leia-se Testemunhas de Jeová, Deus terá sido inventado há cerca de  dez mil anos, mais coisa menos quilómetro. Criou o mundo e tudo o que ele contém, achou que tudo era bom, excepto ao dia segundo, e descansou ao sétimo dia. Deus propôs-se, naturalmente, a proteger os Seus filhos, o que só lhe ficou bem. aliás é nesse sentido que eles, os filhos,  rezam, é para isso que se fartam de encher as igrejas, “pace nobis Domine”, “miserere nobis”,  porque “laudamus te, beneticimus te”, e a coisa ia correndo, mais tropeção menos canelada, embora ultimamente com alguns acidentes de percurso, certamente a denunciar fragilidades próprias da inevitável senilidade, ou perda de capacidade de gestão. Até que Deus decidiu, e eu aplaudo a decisão, que se Passos está a escavacar o Estado Social ele, Deus, por maioria de razão, também tem o direito de escavacar o Religioso Social. Porque isto da protecção divina é uma coisa complicada, é só preocupações e despesas, os óbolos minguam ao ritmo do aumento da crise,  o que se deposita na bandeja do sacristão é insuficiente, o buraco financeiro aumenta assustadoramente, e Deus, na sua infinita sabedoria, não pode desconhecer as consequências de um eventual resgate, já que o Exemplo de Portugal ecoou pelo espaço celeste. Por isso, apercebendo-se das inegáveis vantagens das privatizações, eis que, num gesto sem precedentes e correndo, embora, o risco de ser apodado de ultra-liberal pela Oposição, leia-se Satanás,   também Ele decide privatizar a Divina Providência.

Não posso deixar, no entanto, de manifestar uma dúvida: essa coisa de os fiéis terem seguro, é alguma forma encapotada de orientar o sentido de voto?

11 de Maio, 2014 Carlos Esperança

A inflação das relíquias e a sua cotação (Crónica)

A bolsa de valores pios sofreu, ao longo do tempo, uma lenta erosão, no que diz respeito às relíquias, que orgulhavam os donos e protegiam os domicílios onde jaziam.

Outrora, a exaltação das relíquias deu origem a um próspero negócio e à criação de uma indústria de contrafações cujos produtos rivalizavam com os verdadeiros, a obter graças e a obrar milagres.

Assim se distribuíram por paróquias uma dúzia de braços de S. Filipe, só ultrapassado por Santo André a quem arranjaram 17 para gáudio e devoção de crentes de um número igual de paróquias.

Às vezes eram bizarras as relíquias e não menos inspiradoras de piedade, como sucedeu com o rabo do burro que carregou a Virgem Maria, com a pena de uma asa do arcanjo Gabriel ou com as línguas do Menino Jesus. Mas era a piedade, a imensa piedade, e a raridade de peças genuínas no mercado da fé, que levou Santa Juliana a ter 40 cabeças dispersas, para piedosa contemplação dos crentes.

Nem vale a pena falar do Santo Prepúcio, relíquia comovedora, por ser do próprio Jesus Cristo. Dos vários que houve (prepúcios, porque JC foi único), apenas a um foi passado certificado de garantia e, depois, até esse foi declarado falso. Decidiram os cardeais que JC não poderia ter ressuscitado sem ele e, a partir daí, pairou a ameaça de excomunhão sobre os crentes que se lhe referissem, mesmo para os que tinham obtido graças por seu intermédio.

Enfim, as relíquias da ICAR, quase sempre macabras, pedaços de santos desidratados ou ossos mirrados, são hoje tão acessíveis que arruinaram o mercado das falsificações. Só os fragmentos de santos e beatos criados no pontificado de JP2 exigiriam armazéns imensos e uma rede de frio de enorme capacidade para as conservar. Seria mais cara a manutenção do que o valor da mercadoria. Três cabelos do já santo João Paulo II (JP2) chegaram à Madeira a custo zero.

Na primeira visita que fiz a Itália, em meados da década de 70 do século XX, saturei-me de relíquias e deslumbrei-me com a perfeição das pinturas e esculturas que decoravam magníficas catedrais onde várias vezes regressei, abstraído da fé, fascinado pela beleza.

Foi na primeira vez que, depois de numerosos ossos exibidos, a guia sujeitou o grupo a observar um esqueleto inteiro, em excelente estado de conservação, devido às virtudes que, em vida, exornaram o taumaturgo. Maiores do que as graças que concedia eram os exemplos de piedade que deixara. Era o orgulho da paróquia, uma localidade próxima de Nápoles, habitada por uma pequena comunidade que possuía uma igreja e relíquias a causar inveja a muitas cidades.

Estava a guia empolgada a falar das virtudes do santo, cujo esqueleto mostrava, quando alguém lhe perguntou de quem era um esqueleto pequeno que se encontrava próximo. Sem titubear, respondeu de imediato:

– Era do mesmo santo, quando jovem.