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Dia: 1 de Maio, 2014

1 de Maio, 2014 José Moreira

O milagre do Simplício*

 

 

 

Simplício é bom rapaz. Crente furioso e católico compulsivo, acredita no poder imenso de tudo quanto é deidade ou santidade. Mas a sua fé não conseguiu, apesar de tudo, livrá-lo de um cancro na garganta. “Faça-se em mim segundo a Sua vontade”, resignou-se mas, no fundo, sabia que o Senhor não queria que ele, Simplício, morresse de cancro, tanto mais que é consabido que raras são as pessoas que falecem dessa patologia, sendo muito mais vulgar que se morra de doença prolongada. Ora, o Senhor, na Sua infinita misericórdia, tinha presenteado Simplício com um corriqueiro cancro, e não com uma mortífera doença prolongada, o que Simplício entendeu como um sinal de esperança. Sendo assim, entendeu não ser ofensivo para com o Senhor o recurso à Ciência, porém, sempre se foi prevenindo com toda uma parafernália de rezas, benzeduras, promessas, terços, novenas e outras actividades religiosas, que isto da Ciência não é muito de fiar, hoje dizem uma coisa e amanhã o seu contrário. O que é certo é que, após dezenas de avé-marias, outros tantos padre-nossos, genuflexões e quilos de cera, devidamente acolitados por doses cavalares de quimioterapia e radioterapia apontada à garganta, eis que Simplício recebe, do médico, a notícia de que o cancro estava devidamente controlado. “Graças a Deus!”, exclamou Simplício, desde logo desatando a planear o cumprimento das promessas feitas, logo que o estado físico lhe permitisse as preditas 157 voltas no joelhómetro de Fátima.

Mas nem tudo são rosas, e eis que, após uma TAC de vigilância, um médico regista uma qualquer anomalia na parte superior dos pulmões. Com uma diplomacia própria de um sargento instrutor, o pneumologista decretou: “Meu caro, isto ou é cancro ou tuberculose” sem aventar, sequer, uma terceira hipótese. Simplício entrou em compreensível pânico, já prevendo a transformação do ridículo cancro na temível doença prolongada. “Desta vez, já estou”, resignou-se. “Nem Deus me pode valer”. Mas a verdade é que Deus escreve direito por linhas tortas, como adiante se verá.

Simplício, embora resignado, tornou-se meditabundo e cabisbaixo. Deixou-se arrastar penosamente pelo caminho do que, no seu entender pouco, lhe restava de vida. E foi nesse estado patético de depressão quase a tornar-se crónica, que se apresentou na consulta de vigilância de Oncologia não sem que, previamente, tivesse prometido mais todo um rol de velinhas, missas, esmolas, genuflexões e, cereja em cima do bolo, uma peregrinação ao Vaticano, que Fátima lhe parecia preço pouco a pagar por tamanha graça, caso ela se concretizasse.

– Então, Sr. Simplício, como se sente?

– Mal, doutor. Muito mal. A última TAC revelou uma qualquer coisa nos pulmões, e desta já não me safo. Ou cancro, ou tuberculose. Ora, aplicando a Lei de Murphy, é cancro.

Franzindo o sobrolho com divertida estranheza, o esculápio retirou do envelope os documentos clínicos, que examinou atentamente. Depois, deixou que um sorriso se lhe abrisse, de orelha a orelha:

– Nada disso, Sr. Simplício. Ainda não é desta. O que o senhor tem é a parte superior dos pulmões queimada pela radioterapia. Nada de grave.

– Então… não é doença prolongada?

– Nem prolongada, nem doença, meu caro.

“Milagre!” exclamou silenciosamente Simplício. Embora sem certezas quanto à autoria do milagre, decidiu atribuí-lo ao São João Paulo II que, ao que parece, também estava no ramo da oncologia, para além da neurologia, o que se compreende já que, liberto, finalmente das preocupações pontifícias, tinha todo o tempo do outro mundo para estudar e se especializar em vários ramos da ciência médica.

*Baseado em factos verídicos.

1 de Maio, 2014 Carlos Esperança

Comentadores devotos do Diário de uns Ateus

Há na última vaga de peregrinos em romagem ao Diário de uns Ateus a sanha reforçada, um proselitismo agudo e uma demência mística que não era usual.

Acredito que os confessores os isentaram das orações e que a penitência, após confissão bem feita, se converteu, para expiação dos pecados, em peregrinação ao blog dos ateus.

É uma forma de porem a fé à prova, sem necessidade de genuflexões.

Substituem os pai-nossos e ave-marias com que embrutecem o espírito e desencardem a alma com insultos aos infiéis, ameaças aos blasfemos e profecias sobre o destino dos sacrílegos. Trilham caminhos tão sinuosos como os da fé.

Um santo asno já profetizou a morte deste modesto escriba, implorando-a ao deus dele, enquanto uma rata de sacristia ameaçou golpear-me com os pés todos.

Os directores espirituais, uma espécie de polícias das consciências, conhecem os riscos que correm as ovelhas, capazes de se tresmalharem do redil, mas é um risco que vale a pena. Quem aguentar ao Diário de uns Ateus fica apto para a insanidade, o martírio e a violência com que julga ganhar o Paraíso.

Os leitores parecem sair disparados da missa com a hóstia mal deglutida, ainda húmidos da aspersão do hissope, cheios de Espírito Santo, em loucas arremetidas contra os ateus.

São bem-vindos tais devotos. Nada temos contra os crentes, só combatemos as crenças e os trampolineiros da fé.