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Dia: 6 de Agosto, 2013

6 de Agosto, 2013 Carlos Esperança

O laicismo e o ateísmo ao serviço da democracia

O Laicismo é uma exigência democrática e o ateísmo uma regra higiénica

[A discriminação religiosa é inaceitável, incluindo a positiva]

O Estado não é o notário que possa certificar o carácter sagrado de um livro. Distinguir um é excluir os outros, eleger é também proscrever. Sagrado é o livre pensamento e o direito de perscrutar a própria consciência.

Se o Estado considerasse sagrada a Bíblia, por exemplo, teria de reconhecer aos outros livros, onde as religiões se fundamentam, o mesmo carácter, igual respeito, idêntico grau de veracidade. E esses livros não apenas se excluem entre si, como as religiões, que deles se reclamam, se digladiam mutuamente.

O Estado é obrigado a aceitar os crentes sem ter de aprovar as crenças. Não pode privilegiar um credo, não deve conceder um tratamento diferenciado. O ateísmo é, no mínimo, tão respeitável como qualquer religião.

A Bíblia é um livro respeitável, tal como o Corão ou a Tora. Mas, havendo quem os leve a sério e se sinta obrigado a impor as suas prescrições, é preciso travar o proselitismo porque colide com os princípios humanistas da democracia. Doutro modo os homens ficam reféns da vontade de Deus, interpretada pelos profissionais da fé.

A paz entre os povos não se alcança pelo armistício entre as várias religiões mas pela perda da sua importância, pela libertação da sua influência, pelo afastamento dos seus clérigos da esfera do poder civil. Quanto mais laico é um Estado mais livres são os seus cidadãos.

44 hectares de sotainas procuram amordaçar a humanidade a partir de Roma. Procuraram sempre. Em Israel a fúria insensata dos judeus ortodoxos, que insistem em considerar-se eleitos, desrespeitam os palestinianos e negam-lhes o direito a uma pátria. Os adeptos de Maomé não desistem de destruir os infiéis, em geral, e o grande Satã, em particular. Que sucederia se os homens livres deixassem acorrentar-se à onda demencial que grassa pelas sinagogas, mesquitas e igrejas, onde se prega o ódio e se promete o paraíso a quem combate os inimigos? O ateísmo não persegue os crentes mas as religiões esmeram-se a castigar por igual ateus e crentes de religiões concorrentes.

As religiões enjeitam o pluralismo, acoimam de heresia o livre pensamento, odeiam a diferença. Mantêm uma vocação totalitária que só a secularização das sociedades pode refrear. Se hoje a exótica obstinação suicida do islamismo se nos afigura mais exuberante é porque esquecemos o proselitismo com que outras confissões ensanguentaram a humanidade. O espírito libertador da Revolução francesa não nasceu nas sacristias.

Não podemos enjeitar os princípios humanistas para reabilitar as religiões que os combateram ou contra as quais se afirmaram. Deus não vale a vida de um só homem e todos os dias há quem morra e quem mate em nome dele. Impor a religião é um anacronismo, um ato de intolerância, uma violência. Os valores morais não são apanágio das religiões nem fruto da tradição eclesiástica.

O paradigma das sociedades livres terá de ser a tolerância e não a fé. Os ateus tolerantes têm um papel pedagógico a desempenhar.

A tolerância exclui, todavia, o relativismo e afirma-se no distanciamento das religiões. Os ateus não se diluem nem renunciam aos princípios. Proclamam-nos para abrir os caminhos que libertam a humanidade da escravidão religiosa ou ajudam a mitigar o potencial de violência das religiões.

Não podemos ser arautos dos milagres que o mais abjeto dos patifes é capaz de produzir quando a sua canonização convém à santa mafia que em Roma se opõe ao progresso da humanidade. Em nome do pragmatismo não podemos renunciar aos princípios. O poder não dispensa princípios e só estes justificam o empenho no seu exercício.

A fé é inimiga da razão. A água benta não se torna potável. O incenso agride a pituitária dos homens livres. Os sacramentos não são o instrumento dialético que transforme os homens mas a mezinha que domestica o intelecto.

A liberdade, a igualdade e a fraternidade são princípios que as igrejas combateram e combatem e que se conquistaram na luta contra o clero. Pio IX achou que a Igreja era inconciliável com a liberdade e a democracia. Acabou a fazer um milagre e a ser beatificado. Falta-lhe outro milagre para concluir a carreira de santo a que a santidade de turno (JP2) o quer destinar.

Aceitar a promiscuidade religiosa no Estado é desonrar a ética republicana. Consentir outra hierarquia que não seja a que os povos livremente sufragam é transigir com poderes antidemocráticos que as teocracias promovem.

A luta do laicismo, a que os ateus se associam, é pela paz, ao serviço do pluralismo e do livre pensamento. Não pode haver na humanidade reservas territoriais exclusivas de um credo, de uma filosofia, de uma forma única de pensar. Teremos de ser o fermento da mais ampla tolerância com a mais firme das convicções.

Não há hoje em Portugal perseguições anticlericais. Há, isso sim, uma carência de pudor republicano, uma capitulação dos homens livres perante as sotainas, uma demissão face às investidas clericais em curso. Quem se habituou a viver de pé não quer morrer de joelhos. A genuflexão é um ato indigno de homens livres.

Na podridão da fé há de florir a razão.

Temos de ser dignos do exemplo dos que nos guiaram nos caminhos do laicismo e nos preveniram contra a lepra que dos confessionários e dos púlpitos corrói o tecido moral das sociedades. As “causas da decadência dos povos peninsulares” não foram ainda erradicadas e nós não podemos desistir de o fazer.

Alto à fé para ouvir a razão. Rezar é a forma mais fácil de não pensar. Fim a Deus, em nome da paz. E da liberdade. E da igualdade. E da fraternidade.

P.S. – Não me revejo numa qualquer derrapagem mística a caminho da sacristia. Se a idade ou a moleza das convicções leva alguns à regressão cultural, de que a inteligência e a honra os haviam emancipado, espero, no que me diz respeito, que a coerência me acompanhe ou, caso contrário, a demência seja diagnosticada a tempo, para poupar um exemplo deplorável aos outros e um fim vergonhoso a mim próprio.