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Dia: 30 de Dezembro, 2011

30 de Dezembro, 2011 Raul Pereira

O mundo não acabará em 2012…

…por isso refrescamos levemente a nossa imagem. Esperemos que gostem e, sobretudo, que continuem a passar por cá.

Obrigado a todos pelo excelente ano que está a terminar: o Diário Ateísta cresceu em contribuidores e em leitore(a)s, não só em Portugal como no outro lado do Atlântico, e a Associação Ateísta Portuguesa continua a atrair muitos novos associado(a)s, o que muito nos honra. Como tudo leva a crer que o planeta não saltará da órbita durante o próximo ano, continuaremos a empenhar-nos para manter esta curva em ascensão. Para mal da espécie, no entanto, tudo leva a crer, também, que não faltará o ódio religioso e que muito dele não será tão inócuo como uma estúpida luta de vassouras… Cá estaremos para debater e informar, como sempre.

Saudamos todos os não-crentes, os crentes e todos os seres vivos da Terra e fazemos votos para que 2012 vos traga tudo o que planeiam fazer (de bem) com os vossos bissextos 366 dias.

 

DA

 

30 de Dezembro, 2011 Ludwig Krippahl

Treta da semana: direitos, graças a Deus.

No blog do Expresso, o Henrique Raposo escreveu esta semana que «o Direito Natural precisa de uma base religiosa, precisa de uma comunicação com a transcendência divina. [Porque] sem uma noção de transcendência, sem algo que nos liberte da prisão do aqui-e-agora, o poder político fica com as portas abertas para limitar os direitos inalienáveis dos indivíduos.» Desta premissa conclui que «os tais “direitos inalienáveis” (a base ética e constitucional das nossas vidinhas) têm uma raiz bíblica» pelo que há «necessidade de Deus (e de Cristo)»(1). Que grande confusão.

A inferência da “noção de transcendência” para “raíz bíblica” e, daí, para o Deus cristão e Cristo, apesar de costumeira neste tipo de argumentação, é obviamente inválida. Há muitas “noções de transcendência” que nada têm que ver com a Bíblia e, mesmo entre as que têm, muitos milhões de pessoas seguem aquelas que não incluem Cristo. Mesmo que os direitos naturais precisassem de uma transcendência divina, nada permitiria concluir que esta seria Cristo ou um deus como os cristãos imaginam.

Também não é preciso um deus desses para justificar direitos naturais. A ideia de que há um conjunto de direitos e deveres inerentes ao ser humano, independentes das leis que os humanos criam, é uma parte fundamental de muitas filosofias éticas que não dependem de um deus pessoal como o dos cristãos, desde as mais antigas, como o estoicismo grego e o dharma hindu, até ao libertarianismo moderno. O Henrique argumenta que é preciso essa transcendência cristã porque senão «o poder político fica com as portas abertas para limitar os direitos inalienáveis dos indivíduos.» Mas só ignorando dois mil anos de cristianismo é que se pode julgar que a crença em Cristo impede o atropelo desses direitos que consideramos inalienáveis.

Além disso, as teorias éticas mais influentes hoje em dia – utilitarismos e contractualismos – não se baseiam em direitos naturais. Nestas, os tais direitos que as leis devem respeitar são derivados de factores como a capacidade de sentir ou aquilo que agentes livres e racionais concordariam em estabelecer. A ética moderna não precisa de assumir direitos naturais. O que é uma vantagem porque, como premissa, sempre foram muito frágeis e facilmente descartados por quem estava no poder.

Se o Henrique tiver o cuidado de ler a Bíblia e a Constituição da Republica Portuguesa verá certamente que a relação entre as duas é muito mais de contraste do que de semelhança. O Novo Testamento tem pouco acerca de direitos, deveres, leis ou política. Como fundamento ético, “ama o próximo” tanto dá para lhe lavar os pés como para o queimar vivo para lhe garantir o Céu. Os Autos de Fé eram praticados no mais pio espírito de amor e compaixão. E as partes do Antigo Testamento que lidam com leis e deveres parecem um manual de ditadorismo escrito por facínoras ignorantes. Provavelmente porque são isso mesmo.

Nos primeiros dois artigos, a nossa Constituição declara que Portugal se baseia na «dignidade da pessoa humana e na vontade popular» e que «é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas». Há de me dizer o Henrique quando é que o cristianismo, ou qualquer outra religião de peso, declarou basear-se na soberania popular, no pluralismo e na democracia. Depois temos o princípio da igualdade, que manda a lei tratar todos de forma independente de «ascendência, sexo, raça, língua, […] religião, […] condição social ou orientação sexual.» Gostava que o Henrique mostrasse onde é que isso está na Bíblia, ou na prática das igrejas cristãs destes vinte séculos. Ou, por exemplo, «Em caso algum haverá pena de morte. […] A integridade moral e física das pessoas é inviolável. Ninguém pode ser submetido a tortura, nem a tratos ou penas cruéis, degradantes ou desumanos»(2). Faz-me pensar se o Henrique alguma vez leu a Bíblia, nem que fosse de relance. Ou a história da Europa cristã. Ou sequer reparou no símbolo do cristianismo. Se os direitos humanos que hoje reconhecemos nos tivessem vindo dos tempos bíblicos, Jesus nem sequer teria sido preso, quanto mais torturado e morto na cruz.

É verdade que a nossa cultura é cristã, entre muitas outras coisas. Aqui em Portugal já se vendeu escravos, já se proibiu mulheres de votar, já se prendeu muita gente só por discordar de quem estava no poder e já se torturou pessoas por terem a religião errada. A “nossa” cultura é uma mistura de actos e tradições de muita gente, com coisas boas e coisas más. A nossa noção de direitos humanos universais, acima de qualquer legislação ou governo, vem no seguimento de toda esta história. Isso é inegável. Mas é um disparate dizer que surgiu por causa do cristianismo. Mais correcto será dizer que surgiu apesar do cristianismo, e de muitas outras tradições também contrárias à igualdade, à liberdade e à democracia.

1- Henrique Raposo, A necessidade de Deus (e de Cristo)
2- Parlamento, Constituição da República Portuguesa

Em simultâneo no Que Treta!