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Dia: 9 de Abril, 2010

9 de Abril, 2010 Carlos Esperança

A pedofilia, a Igreja católica e as responsabilidades

Quem sempre se insurgiu contra aquela oração das sextas-feiras que visava os judeus, todos os judeus, ao longo dos séculos, de todos os séculos, por terem matado o Cristo; quem repudiou aquele secular anti-semitismo, a demência racista, o ódio à concorrência, não pode transformar agora os crimes individuais em culpa de uma instituição.

Os crimes são individuais e só nessa óptica devem ser julgados. A Igreja católica, por mais delitos que tenha cometido ao longo da História, não pode ser julgada pelo actual comportamento dos seus empregados.

A ICAR paga agora séculos de poder absoluto, o despotismo do seu clero e as obsessões papais. Não está provado que o clero católico seja mais devasso do que o protestante ou do que o islâmico, sendo o último mais implacável na violência com que impõe o Corão e no policiamento que faz dos desgraçados que mastigam uma sanduíche de presunto ou que saboreiam um copo de vinho.

O que perde a ICAR é o desplante com que oculta os crimes e protege os criminosos, a ignorância de que é crime o encobrimento que fez nas últimas décadas para evitar que o seu clero perdesse a autoridade que despoticamente exerceu nas zonas mais atrasadas do Planeta.

A pressa do actual Papa em canonizar os seus dois últimos antecessores não é alheia ao comprometimento dos pontífices na ocultação dos crimes do clero. O milagre de João Paulo II obrado na freira polaca, que sofria de Parkinson, não resistiu à recidiva e pôs a nu o prodígio de fazer, depois de morto, o que não conseguiu em vida para si próprio.

A demência parece ter tomado conta do Vaticano. Os 44 hectares de sotainas parecem  povoados por uma tribo da idade da pedra onde o grande feiticeiro usa camauro e os acólitos se distinguem pela cor das meias e o exotismo dos trajes femininos.

O ex-chefe da repartição de milagres, embrutecido por jejuns e orações, diz que a roupa suja se lava em família, ignorando a gravidade do crime de ocultação e o abandono, ao instinto predador de psicopatas pios, de crianças que deviam merecer consideração.

Ratzinger fez uma cartilha secreta para “ocultar crimes sexuais” o que só pôde fazer com a bênção de João XXIII e manter com a conivência de João Paulo II.

Quem fez, em latim, este documento cuja tradução não existe em português, não estará à espera da canonização, mas é injusto que morra sem prestar contas à justiça dos homens. A outra é uma ficção para ganhar a vida.

Nota: Para esclarecimento dos bispos portugueses é importante lembrar o Artigo 367º (Favorecimento pessoal) do referido Código Penal:

«Quem, total ou parcialmente, impedir, frustrar ou iludir actividade probatória ou preventiva de autoridade competente, com intenção ou com consciência de evitar que outra pessoa, que praticou um crime, seja submetida a pena ou medida de segurança, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.»

9 de Abril, 2010 Carlos Esperança

Viagem de autocarro (Crónica)

Há tempos entrei num autocarro, tendo-me sentado no banco ao lado de um padre católico, do outro lado da coxia.

Olhei aquele rosto triste de um homem de 70 anos, com o colar romano a apertar-lhe o pescoço como o cincho onde se espremia o queijo para extrair o soro. Há muito que não via tal adereço na via pública. O uso deve ter-se mantido com a resignada dedicação ao múnus.
Não pude deixar de apreciar aquele homem só, a caminho de alguma casa da Igreja ou de um ritual qualquer que já perdeu o sentido, ou nunca o terá tido, e de que a sociedade se desinteressou.

Que sofrimento ajudou a desenhar aquelas rugas? Quantos desejos reprimidos e anos perdidos com o pescoço apertado por um colar e a lapela ornada com uma cruz?

Terá amado? Teve sonhos? Realizou-os? Próximo de mim estava um cidadão solitário, com olhos vagos e o ar de quem cumpriu a vida sem a viver.
Seria preciso ser cínico ou mau para não sentir compaixão por quem dedicou o tempo e a juventude a uma quimera, perdeu a vida perseguindo o sonho do Paraíso e se aproxima do fim da estrada sem saber porque a percorreu.

Somos ambos da mesma massa. Com poucos anos de distância ensinaram-nos a ajoelhar e a rezar. Eu levantei-me, ele ficou de joelhos. Eu vivi a vida, amei e passei incógnito na estúrdia, sem um colar que pressupõe a trela e sem a cruz a que não terão faltado espinhos. Ele imolou a vida por um mito e esqueceu-se de si próprio por coisa nenhuma.

Um homem nunca anda só, é certo, traz consigo as memórias que guarda e os sonhos que acalenta; mas, com o passar dos anos, sobram memórias e mingua o tempo para sonhar.

É injusto que aquele homem que sofreu o que eu não sofri e trocou a vida que recordará por outra que lhe inventaram, tenha os mesmos sete palmos de terra à espera, sem um filho que o recorde, sem alguém que o chore. Por um deus que inventaram para lhe tramar a vida.

Suportou jejuns, abstinências e mortificações, e passou os dias guardando horas para a leitura do breviário. Quanto terá sofrido na convicção de que podia atenuar o martírio do seu Deus?

(Publicada no Jornal do Fundão de 08-04-2010)