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Dia: 18 de Junho, 2009

18 de Junho, 2009 Ludwig Krippahl

Ateísmo nos valores.

«A democracia exige que aqueles que são motivados pela religião traduzam as suas preocupações em valores universais em vez de particulares à sua fé. Exige que as suas propostas sejam discutidas e se sujeitem à razão. […N]uma democracia pluralista não temos alternativa.» Barack Obama (1)

Historicamente, o ateísmo enquadrou-se numa discussão sobre factos e conhecimento. Se existiam deuses e se podíamos saber como eram, se era verdade que tinham criado o universo e assim por diante. O crente, o agnóstico e o ateu distinguiam-se pela aceitação, indecisão ou rejeição destas proposições factuais. Mas hoje as prioridades devem ser outras. As questões acerca dos factos continuam pertinentes, até porque ainda há quem acredite que um deus fez um homem de barro, bafejou-lhe vida e todos descendemos dele e da sua costela. Mas além de discutir o que é ou não é, importa resolver divergências acerca do que deve ser. Nisto, hoje importa mais discutir os valores propostos que os factos supostos.

Nos últimos séculos, uma parte da religião tem tentado distanciar-se dos factos, empurrada pelo avanço da ciência. Agora, os crentes mais sofisticados consideram metafórico qualquer relato religioso susceptível de ser refutado. Alguns não largam a criação em seis dias, o Dilúvio e essas coisas, mas uma boa parte defende que a religião não descreve como as coisas são, nem como funcionam, mas apenas lhes dá sentido e governa a nossa forma de viver. Ou seja, que a religião é acerca de valores e não de factos. Por isso é que discutir a existência de Deus com um teólogo católico é como dar socos no nevoeiro. O esclarecimento é muito menor que o esforço. Deus é incompreensível, a fé é um mistério, Deus está na abertura do horizonte de possibilidades num universo inacabado, etc, e não se chega a lado nenhum.

A par desta transformação nas religiões, e não por coincidência, também muitas sociedades passaram a reconhecer a importância de valores outrora desprezados. A liberdade de opinião, crença e expressão; a liberdade de prática religiosa; os direitos das crianças; a democracia; a tolerância pelas outras culturas; a igualdade de direitos entre os sexos e assim por diante. E isto também contribuiu para tornar a divergência de valores entre ateus e crentes um problema mais relevante que quaisquer diferenças de opinião acerca de alegados factos. Pode ser interessante discutir se Jesus ressuscitou ou se a mãe dele era mesmo virgem. Mas é mais importante decidir se devemos punir quem diz mal de um ritual religioso ou se devemos negar uma fertilização in vitro a uma mulher só por ser solteira.

O deslocar deste conflito do campo dos factos para o campo dos valores teve consequências. Uma consequência menor é tornar o agnosticismo menos defensável e, na prática, mais raro. Se por um lado é aceitável ser agnóstico quanto a suposições factuais sobre a ressurreição de Jesus ou o umbigo de Adão, por outro é irresponsável abster-se de tomar posição quando estão em causa valores fundamentais da nossa sociedade. Por isso, em coisas como censurar caricaturas de Maomé ou dar direitos excepcionais a professores de religião, parece-me que os agnósticos acabam, na prática, por ser ateus. Escolhem como quem não tem deus.

Uma consequência mais importante é na ética da nossa sociedade. Neste nível a divisão entre fé e ateísmo é mais fundamental e tão radical que exclui a posição intermédia. As religiões consideram-nos seres morais, responsáveis por seguir e respeitar normas e valores que nos são dados por Alguém. Em contraste, para o ateísmo somos seres éticos, responsáveis não só por seguir normas morais mas, mais do que isso, por criar, criticar, melhorar e substituir essas normas conforme se revelarem inadequadas. Esta é, agora, a diferença mais importante entre crentes e ateus.

É a diferença entre quem questiona o fundamento das normas que o regem e quem espera que o filho de deus lhe diga que já pode comer carne de porco e que não precisa cortar o prepúcio. Entre quem se esforça por distinguir o bem e o mal e quem faz de conta que não comeu esse fruto. Entre quem se assume responsável pelos valores que defende e quem delega essa responsabilidade em seres hipotéticos ou nos seus representantes. Mais do que questões metafísicas da escolástica medieval, é esta diferença de atitude que separa o ateísmo da crença religiosa.

E isto vai ao fundamento do que é ser ateu. Do que é não ter deus. De entre as muitas formas de não ter deus, sobressai esta de assumir responsabilidade pelos nossos valores. Porque o papel principal das divindades é ser a suposta fonte de todos os valores e aliviar o crente desta responsabilidade. E hoje em dia isso é mais relevante que toda a mitologia de milagres e feitiçarias. Não quero dizer que se ignore disparates ou que se evite criticar erros factuais. Pelo contrário; sou sempre a favor disso. Mas proponho que o ateísmo tem de ser mais que discutir se os deuses existem ou não existem. Porque o fundamental para proteger e melhorar os valores da nossa sociedade é a capacidade de pôr os deuses de parte quando discutimos o que devemos fazer. A capacidade de ser ateu ou, pelo menos, de se portar como quem não tem deuses.

1- Barack Obama, 1-6-2006, Call to Renewal Keynote Address. Obrigado pelo email com o vídeo, que já não me lembrava deste discurso e veio mesmo a calhar para o post.

Também no Que Treta!

18 de Junho, 2009 Carlos Esperança

João Paulo II

Parece que o papa João Paulo II tinha uma amiga a quem escrevia cartas e isto (o facto dela ser da persuasão feminina) “pode atrasar a sua beatificação”. Um sonho. Matar espanhóis aos magotes (Nuno A. Pereira) ou apoiar um facínora e o fuzilamento sumário de milhares e milhares de inocentes (Escrivá) não faz mal. Mas escrever cartas a uma mulher é, aparentemente, um crime imperdoável!

Filipe Castro in Esquerda Republicana