Loading

Dia: 27 de Julho, 2008

27 de Julho, 2008 Carlos Esperança

O SABER DE QUEM NÃO SABE

Por

ONOFRE VARELA

Estou a estrear-me neste espaço, cumprindo a ameaça que venho a arquitectar, há imenso tempo, mas nunca concretizada. Realizo agora tal pensamento arremessando-vos esta minha análise crítica à leitura que fiz de uma notícia de jornal. Embora o acontecimento não seja recente ele acaba por ser actual porque, como é sabido, uma das características da coisa religiosa é ter interesse arqueológico…

O texto que segue faz parte do projecto de um livro que tenho pronto para publicação e que complementa “O Peter Pan Não Existe – Reflexões de um ateu” editado pela Caminho em Janeiro de 2007. Um mês depois do seu lançamento, houve um ciclo de conferências em Lisboa subordinado ao tema “As Religiões dos Filhos de Abraão”, e o pavilhão da Culturgest apinhou-se de gente interessada em ouvir cinco pessoas crentes falarem da sua fé. O que os promotores do evento pediram aos palestrantes, foi que dissessem, por palavras que todos entendessem, se acreditam em Deus, por que acreditam e como acreditam, na tentativa de poderem ser melhor entendidos por aqueles que não têm a mesma fé.

Eu tive conhecimento do evento através do jornal Público (11/3/2007), depois de tais conferências terem ocorrido, obviamente.

Os intervenientes foram: Samuel Levy, judeu, 78 anos. Silas Oliveira, protestante, 62 anos. Abdool Karim Vakil, muçulmano. Ivan Moody, ortodoxo, 43 anos, e José Tolentino Mendonça, católico. No resumo dos seus depoimentos, feitos pelos próprios, é possível retirar, “ipsis verbis”, as seguintes frases sobre a fé e a crença que depositam em Deus:

— A fé é uma convicção que, por definição, não carece de explicação racional.

— A criação da vida é tão complexa que não pode ter acontecido por mero acaso. É mais fácil acreditar que a vida tenha sido obra de uma vontade superior.

— Acredito que tudo tenha sido criado por um Deus (seja lá o que for que isso signifique), Ser Primordial, infinito, incorpóreo, sem composição, eterno e único. Esta definição é clara e parece-me perfeitamente evidente.

— A fonte da minha fé é a Bíblia, pelo testemunho dos povos que a escreveram.

— O que nos define não é acreditar em Deus, mas testemunhar Deus.

— A relação com Deus vive-se na relação com os outros em sociedade; na obrigação, no serviço e na solidariedade.

— Nunca duvidei da existência e da bondade de Deus.

— Não sei de nenhuma descoberta científica que ponha em causa a minha fé.

— Se me perguntar: pode provar a virgindade de Maria? é óbvio que não.

Mas o que está errado é a pergunta, porque parte da necessidade de uma prova científica segundo o modelo da ciência actual.

— Importante não é ajudar a demonstrar, mas a ver.

— A fé inscreve o olhar humano no ponto de vista de Deus.

Nestes depoimentos de quem necessita de ter fé num deus para viver harmoniosamente, encontro na primeira premissa: “a fé é uma convicção que, por definição, não carece de explicação racional”, de Samuel Levy, o factor primordial para se ser crente, e deles faço a seguinte leitura:

— Para crer, o raciocínio não é necessário.

— A complexidade dos seres vivos não pode ter sido iniciada através de uma cadeia de acasos físicos e químicos. Um Deus é explicação suficiente que dispensa disciplinas científicas, e o raciocínio não é necessário, pelo que não tem interesse perguntar se Deus (como primeira causa) se criou a si próprio.

— Os textos bíblicos, narrando acontecimentos históricos, registando leis sociais, costumes locais e fabulando sobre o conceito da divindade, são considerados testemunhos de Deus, rejeitando qualquer outra interpretação baseada em estudos e experiências posteriores e negando outros raciocínios sobre o tema. Comprova-se, assim, a primeira premissa: em religião o raciocínio não é necessário.

— Mais do que acreditar, o que define o crente é testemunhar.

Testemunhar as obras de Deus, como a criação dos seres vivos, por exemplo. Sendo que este “testemunhar” não é dar testemunho presencial de uma ocorrência que se observou, mas afirmar, pela fé, que se dispensam fenómenos químicos e físicos, ocorridos sem uma racionalidade na origem, rejeitando liminarmente — sem raciocínio nem análise — a possibilidade da ocorrência de factos desencadeantes de uma série de acasos que culminassem no surgimento de vida. Os cientistas que queimam as pestanas estudando o princípio da vida, que abandonem o projecto, pois… o raciocínio não é necessário.

— A relação fraterna e solidária que os homens praticam em sociedade, só pode acontecer por um desígnio divino. Nunca devemos pensar que tal relação possa resultar de um apuro ético da vivência em comunidade como seres gregários que somos. Pensar para além do conceito do desígnio divino é um raciocínio desnecessário.

— Deus existe e é um ser bondoso. A bondade é a encarnação de Deus.

Onde não houver bondade e concórdia Deus será ausente. Sabendo-se que há conflitos religiosos, então devemos supor que Deus não estará presente neles, embora seja por ele que os conflitos eclodem. Mas… raciocinar sobre isto é pura perda de tempo, porque em fé o raciocínio dispensa-se.

— Não há descobertas científicas que ponham em causa a fé dos crentes.

Mesmo que tais descobertas existam (o exemplo universal mais simples é o de Galileu), o homem religioso continua a crer que a Terra não se move, que é o centro do Universo, e que o movimento pertence ao Sol.

(Pois não testemunhamos nós o arco que o seu percurso desenha no céu?!). A fé nunca será abalada pela ciência porque os cientistas raciocinam e, na fé, o raciocínio dispensa-se.

— As perguntas incómodas para a Religião e a Fé não têm razão de ser, pois a fé não carece de curiosidade pelo objecto de adoração. Ele está ali para ser adorado, e adora-se. Ponto final. Nunca se deve perguntar: de que é feito? De onde veio? Para que serve e a quem serve?, porque são perguntas que a fé não coloca. A fé basta-se a si própria. Se, pela fé, a caneta que eu tenho na mão, não é uma caneta mas uma flauta, pois bem… eu escrevo com uma flauta! O raciocínio não é necessário.

— Pela fé o meu olhar não existe. A fé cega-me. Só vejo pelo ponto de vista de Deus porque o meu raciocínio não é necessário. Sendo Deus um conceito usado pelos homens para o bem e para o mal, a minha fé cega fará de mim uma pessoa boa ou má, segundo o interesse daqueles que me formataram a mente para atender a fé cega… porque eu dispenso o meu raciocínio.

 

Estas são conclusões que pude retirar dos discursos de cinco religiosos de credos diversos. A dispensa do raciocínio é o modelo para se ser deisticamente religioso. Não ser curioso, não desconfiar da crença, não investigar, não pretender ir além da fé naquilo em que se crê piamente, como Abraão cria na divindade ao ponto de se dispor a

sacrificar o seu próprio filho como prova de fé cega.

Mas esta estória de Abraão, tal como a da sentença de Salomão e a do argueiro no olho inserida nos ensinamentos de Jesus Cristo, e muitas outras, bíblicas ou não, dispensam a prova histórica das suas ocorrências reais porque fazem parte da sabedoria popular e assumem uma forma metafórica, tal como os adágios, rifões ou provérbios. Têm essa importância e é esse o seu espaço. Reflectem os juízos das vivências de qualquer sociedade e, éticamente, são universais e intemporais. Daí o seu valor actual em qualquer sociedade humana.

A grande verdade que está no centro de todas as coisas —  nós só vemos a períferia do todo e sobrelevamos os nossos interesses particulares e egoístas —, é o facto de todos nós, ateus, agnósticos ou profundamente crentes, sermos, principalmente, ignorantes, vaidosos e interesseiros.

Ignorantes porque não sabemos o que há para saber além do que sabemos ou julgamos saber; vaidosos porque garantimos saber o que dizemos, quando dizemos o que imaginamos saber; e interesseiros porque procuramos gritar a nossa razão mais alto do que a razão dos outros.

Todos somos ignorantes, e entre tanta ignorância escolho dois lotes: o lote dos ignorantes presumidos da existência de Deus, e o lote dos ignorantes presumidos da inexistência de Deus. Pertenço ao segundo lote, e continuo a presumir que a ignorância dos do primeiro lote é bastante superior à minha, porque eles acreditam no sobrenatural… e a teoria do conhecimento exclui o sobrenatural. E eles, na sua extrema ignorância, não só o aceitam como o rotulam de autêntico conhecimento e saber!

 

Por outro lado, quando se aborda o tema “saber”, impõe-se perguntar: O que é saber?

Há saber?… Ou há, apenas, o desejo de saber?

O humorista brasileiro Luís Fernando Veríssimo — filho do escritor Erico Veríssimo — diz, na sua novela “O Clube dos Anjos”, que “a fome é o único desejo reincidente; pois a audição, a visão, o sexo e o poder acabam, enquanto que a fome continua…”. O “querer saber” é como a fome: um desejo reincidente que continua para além de todos os nossos desejos. Aquilo que se nos coloca como dúvida impele-nos a conhecer a coisa que questionamos, e o saber define a situação do conhecimento adquirido perante a coisa que deixou de ser questionada.

Neste sentido, o saber é utópico, já que os homens se questionam constantemente, o que é sintoma de não se possuir o conhecimento completo que nos daria a sabedoria total sobre todas as coisas. Tal nunca sucederá, já que um qualquer saber provoca o aparecimento de questões que conduzem a outros saberes, e estes a outras questões num

encadeamento provavelmente sem fim.

Excepção para os furibundos das religiões que na sua imensa ignorância renitente acreditam não haver nada mais para saber, para além do que garantem saber: que há um deus que tudo sabe!…

 Onofre Varela