O Vaticano reafirmou a excomunhão do bispo americano Fabian W. Bruskewitz, decidida há dez anos, por pertencer a um movimento – Call to Action -, que defende alterações na doutrina de Roma face ao celibato dos padres, à ordenação das mulheres, ao processo de selecção de bispos e papas, e à contracepção artificial.
B16 tem o direito de excomungar quem quiser: o Diário Ateísta, os seus colaboradores, o sacristão da igreja das Mercês, o diácono de Alcântara ou o prior de Santos-o-Velho. É uma forma de equilibrar as bênçãos papais a Franco, Salazar, Moussolini, Pinochet e outros criminosos amigos da hóstia e do Papa.
Mas o Sapatinhos Vermelhos, ao excomungar pela segunda vez o bispo americano, veio provar aos ateus que a excomunhão tem um prazo de validade curto ou que o antecessor era incompetente para fazer uma excomunhão bem feita.
Sendo os objectivos da associação a que pertence o bispo, detalhes de secretaria que um Papa vindouro vai alterar, não se percebe o objectivo da excomunhão – um bem escasso que gasta com os colegas em vez de usar em ateus.
Deus, se existisse, havia de preferir a companhia de quem o nega à dos embusteiros que vivem à custa dele. O excomungado vai verificar que o castigo é irrelevante e, assim, é mais um a dar-se conta da inutilidade dos actos do Vaticano.
Foi ontem apresentado na Maternidade Alfredo da Costa o estudo «A Situação do Aborto em Portugal: Práticas, Contextos e Problemas», assente numa sondagem encomendada pela APF à Consulmark.
Para além do autismo subjacente aos protestos dos movimentos pró-prisão em relação ao facto de um organismo público ter albergado a divulgação do estudo – mas não protestaram, claro, a apresentação do livro pró-prisão «Vida e Direito», da autoria de Matilde Sousa Franco, na Faculdade de Direito da Universidade do Porto, igualmente um organismo público – importa reflectir nos resultados deste estudo, que desmistifica algumas lendas urbanas em torno do tema.
O estudo indica que 350 mil mulheres em idade fértil (isto é, entre os 18 e os 49 anos) já terão abortado em Portugal. Pessoalmente considero que estes números pecam por defeito – e conheço muitas mulheres que sei terem abortado e se recusam a admiti-lo – também pelo facto de a sondagem se ter restringido a mulheres em idade fértil, isto é, a mulheres que cresceram e viveram na época de contraceptivos mais eficientes e acessíveis. Estou certa que se inquiridas mulheres da geração da minha mãe, em que os contraceptivos eram de mais difícil acesso e menos eficazes e o «desmancho» algo banalizado no «sub-mundo» das mulheres, estes números seriam muito mais avassaladores.
De qualquer forma, estes números demonstram claramente que o aborto não é, como pretendia um conhecido fazedor de opinião da nossa praça, «uma questão residual». Na realidade, e como este «exercício fútil e idiota mas às vezes dá vontade de o ser…» da Shyznogud indica, usando um método contraceptivo com uma eficiência de 99,5% – que é um valor optimista e não entra em conta com possíveis problemas, por exemplo gastro-intestinais, que anulam o efeito dos contraceptivos orais – todas as mulheres fertéis têm uma probabilidade, calculada de forma conservadora, de pelo menos 1,5 gravidezes indesejadas!
E o estudo indica que muitas destas gravidezes indesejadas são interrompidas, não obstante a lei, e – como refere o médico pró-despenalização Constantino Sakellerides, da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) e ex-director-geral da Saúde – torna evidente que as mulheres não tomam a decisão de abortar «com ligeireza»- a maior parte diz que a decisão foi «difícil» ou «dificílima».
O estudo ressalta ainda o problema de saúde pública que o aborto clandestino constitui já que quase 35% das mulheres ouvidas fala em complicações pós-aborto. Dessas, 27,4% precisaram mesmo de internamento hospitalar. Em um terço dos casos em que foi usado um medicamento abortivo, foi necessário concluir o processo num estabelecimento de saúde.
Isto é, os que ululam o espantalho SNS, ignoram, para além dos traumas psicológicos e físicos que a situação constitui, os custos actuais da criminalização do aborto, comparáveis ou até superiores àqueles que a despenalização acarretaria mesmo se a IVG fosse integralmente suportada pelo SNS, o que duvido!
No Público de sábado entre os artigos dedicados à tese de mestrado sobre o aborto de Andreia Peniche (links reservados a assinantes) retiro o que considero ser o cerne da questão no referendo de 11 de Fevereiro e que o estudo evidencia:
«A autora aponta ‘a dificuldade em perceber as mulheres como seres autodeterminados e capazes de escolhas responsáveis e morais‘».
Ou seja, num país que foi pioneiro na abolição da pena de morte, o que indica que a população nacional não aceita que qualquer que seja a dignidade ética de um determinado indíviduo esta se sobreponha à dignidade intrínseca de uma pessoa humana, todos (ou quase, há uma percentagem muito pequena de fundamentalistas católicos que quer uma lei análoga à da Nicarágua, que condena à morte todas as mulheres que tenham uma gravidez ectópica) aceitam e aprovam o aborto por escolha médica. Mas desses, muitos não aceitam o aborto por escolha da mulher! Isto é, para esses o aborto não é intrinsecamente algo errado o que é errado (ou fútil) é permitir que se realize por escolha da mulher!
Subentendendo a aceitação do aborto por opção médica – uma vez que estou certa que os mesmos que consideram justa a actual lei não aceitariam o assassínio de alguém por indicação médica ou outra – que muito poucos em Portugal consideram ser uma pessoa o embrião ou feto abortado, o que está em causa é o paradigma católico da mulher que ainda impera em Portugal. Mulheres que sendo mais «fracas de espírito» e «atreitas» às tentações do Demo não têm competência moral para tomar este tipo de decisões devendo estas ser feitas por outrem, que ajuizam as motivações femininas para abortar!
Assim, o que vamos votar no próximo dia 11 de Fevereiro é mais do que a despenalização do aborto! Vamos igualmente decidir que modelo de sociedade queremos seja a nossa! Porque uma lei que reflecte claramente falta de confiança na mulher, que não a considera capaz de tomar decisões, corresponde a uma sociedade que não se coaduna com os valores que supostamente deveriam ser os nossos, assente nos direitos do Homem. Se o resultado do referendo for NÃO, a nossa é quanto muito uma sociedade que reconhece (apenas) os direitos do homem…
Um pai tem um filho de 8 meses, e vê que este vai tocar na ficha eléctrica. Em pânico, impede o filho de o fazer. Isto parece absolutamente normal, e ninguém ficaria escandalizado com tal atitude.
Pelo contrário, se um pai dissesse que tinha deixado o seu filho tocar na ficha, sabendo que ele morreria dolorosamente, mas que não o tinha impedido de fazer isso por «respeitar a liberdade do filho», qualquer um consideraria monstruosa essa atitude. Nem adientaria o pai dizer que amava muito o filho e que tinha lamentado imenso a sua perda, mas que não podia desrespeitar a sua liberdade: todos achariam que uma pessoa tão desequilibrada nunca deveria ter sido pai.
O que é que nos faz achar tão legítima a atitude do pai, e tão criminosa a sua potencial omissão?
Nós consideramos que o pai, por conhecer melhor o mundo, sabe melhor do que o filho aquilo que é melhor para este último. Também sabemos que o pai tende a agir, geralmente, no interesse do filho, por causa desse laço de sangue.
Até que ponto é que este tipo de argumentos pode ser válido em relação a um adulto? É complicado…
Apesar do tanto que eu prezo a liberdade, suponho que não hesitaria em impedir o suicídio de um amigo meu, ou mesmo de um anónimo – mesmo que tivesse de invadir o seu espaço. Apesar de acreditar que cada pessoa deve ser livre para se suicidar, o risco de que uma pessoa ao pé de mim o vá fazer por estar num estado psicológico tal que não saiba bem aquilo que é melhor para si próprio é tal que eu sinto que a invasão da sua liberdade com vista a impedir o seu suicídio seria justificável do ponto de vista ético – a opção correcta.
Será assim? Muitos acreditam que o instinto de sobrevivência é tal que um ser humano dificilmente cometeria suicídio se não tivesse num estado tal que não pudesse avaliar convenientemente aquilo que é melhor para si próprio. E que isso legitimaria o impedimento de tal acto.
Se um louco quer cortar as suas próprias pernas por ter medo dos anões vermelhos, devemos deixá-lo cortá-las, ou devemos impedi-lo de o fazer? Sabemos melhor do que ele aquilo que é melhor para ele? Estaremos a agir no interesse dele?
Parece que quem valoriza a liberdade o faz por acreditar que cada pessoa sabe melhor que nenhuma outra aquilo que é melhor para si própria. A partir do momento em que um indivíduo não invade a liberdade dos outros, ninguém deve interferir, pois esse indivíduo sabe, melhor que nenhum outro, aquilo que é melhor para si próprio.
As diferentes excepções – o pai que impede o filho de tocar na ficha eléctrica; o enfermeiro que força o paciente suicida a vomitar a caixa de comprimidos contra a vontade deste; os médicos que não deixam o louco cortar suas pernas – serão justificadas na medida em que realmente não restarem dúvidas que quem invade a liberdade age no interesse do outro, e sabe melhor que este aquilo que o favorece. Que estas condições se reúnam, é algo que pode ser questionado no caso do louco e do suicida, mas dificilmente no caso do bebé de 8 meses.
Quando falo no paradoxo do mal, uma das questões que costumo colocar é a seguinte: «Como pode um Deus de amor ter criado o Inferno? Um lugar de imenso sofirmento por toda a eternidade?» Praticamente todas as respostas que me dão focam a escolha do condenado: quem vai para o Inferno, de certa forma escolheu-o. E Deus respeita essa escolha.
Existe quem não acredite no Inferno; quem acredite que, a existir, estará vazio; e quem acredite que o Inferno não é mais do que a morte simples, perdendo a possibilidade da vida eterna. Este argumento não é dirigido a nenhuma destas pessoas.
Quanto aos outros, gostaria que se detivesse um pouco sobre o problema. Se o Inferno correspondesse de facto a uma eternidade de sofrimento imenso, ninguém o escolheria em plena consciência. Qualquer que fosse a decisão que levasse alguém ao Inferno, seria uma decisão notoriamente inconsciente. Muito mais absurda do que a de qualquer louco.
Se Deus nos amasse, e fosse omnisciente, então a decisão de alguém de ir para o Inferno seria perfeitamente análoga à do bebé de 8 meses que quer tocar na ficha eléctrica – ele não tem noção das consequências do seu acto.
Se Deus não impedir tal acto cuja consequência será o Inferno, a sua atitude é tão injustificável como a do pai que respeita a liberdade do seu filho de 8 meses deixando-o morrer electrocutado. Com a diferença que morrer electrocutado é infinitamente menos grave do que passar uma eternidade a sofrer intensamente.
O Diário de uns ateus é o blogue de uma comunidade de ateus e ateias portugueses fundadores da Associação Ateísta Portuguesa. O primeiro domínio foi o ateismo.net, que deu origem ao Diário Ateísta, um dos primeiros blogues portugueses. Hoje, este é um espaço de divulgação de opinião e comentário pessoal daqueles que aqui colaboram. Todos os textos publicados neste espaço são da exclusiva responsabilidade dos autores e não representam necessariamente as posições da Associação Ateísta Portuguesa.