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Dia: 4 de Outubro, 2006

4 de Outubro, 2006 Ricardo Alves

Religião, teorias de conspiração e aproveitamentos

As teorias de conspiração podem originar literatura fascinante, mas são tão alienantes como a religião. Fascinam porque estabelecem ligações imprevistas, mesmo que falsas ou tremendamente especulativas. E alienam porque suspendem a nossa incredulidade explorando o nosso desejo e o nosso medo de que exista uma ordem oculta no universo.

A realidade da existência de uma ou várias redes terroristas islamo-fascistas, responsáveis pelo 11 de Setembro e pelo 11 de Março, é inegável. É também um facto que esses grupos são a ala armada de um movimento islamista mais vasto (embora minoritário nos países de origem), estruturado essencialmente pela Irmandade Muçulmana e pelo dinheiro saudita, e que controla escolas, instituições de caridade e partidos políticos. A teocracia iraniana desempenha um papel estruturante no lado xiíta, minoritário dentro do Islão.

No entanto, atribuir à Al-Qaeda capacidade militar para conquistar a Europa, ou olhar para os imigrantes muçulmanos como a vanguarda de uma invasão programada, ou falar da Europa como um protectorado islâmico, são delírios paranóides que relevam de preconceitos racistas, da angústia demográfica, de entusiasmo deslocado pelas aventuras militares dos EUA e de Israel, ou da obsessão identitária com a «civilização ocidental e cristã».

Nos anos 20 e 30 do século passado, a extrema direita afirmou-se na Europa, manipulando um anti-semitismo que se alimentava de teorias sobre uma «conspiração judaica internacional», na qual participariam organizações reais (mas débeis), e minorias urbanas que só lhes estavam ligadas pela mesma abstracção religiosa.

Hoje, o mesmo sector político tem interesse em conjugar os sentimentos islamófobos, o apoio a guerras de conquista e o apelo identitário-conservador cristão. Existe uma diferença fundamental entre quem ataca simultaneamente uma religião e as suas primeiras vítimas (os próprios crentes), estimulando o racismo, e quem critica todas as religiões por princípio, promovendo a laicidade.

[Diário Ateísta/Esquerda Republicana]
4 de Outubro, 2006 Palmira Silva

A Igreja e o aborto


Sob os auspícios deste Papa absolutista, que considera que apenas as posições da Igreja em todas as matérias são legítimas, assistimos a uma mudança de estratégia da ICAR que tenta impor à Europa laica os seus ditames anacrónicos verberando «que não se trata de impor aos não-crentes uma perspectiva de fé, mas sim de interpretar e defender os valores radicados na natureza mesma do ser humano».

Isto é, com a pesporrência totalitária de quem se arroga detentor das «verdades absolutas» reveladas, de quem acha que só a «racional» hierarquia da Igreja de Roma é competente para definir o que é a natureza humana da qual decorrem, sem discussão, os seus dogmas, Bento XVI, que confunde pluralismo com relativismo, autisticamente afirma que os «valores» católicos são «valores morais universais e absolutos» e que não aceitar esta supremacia do catolicismo sobre todos os aspectos da vida corresponde a uma «ditadura do relativismo».

Esta nova estratégia de afirmação dos dislates debitados pela Igreja de Roma não como preconceitos religiosos mas sim como «verdades absolutas» que todos devem seguir foi adoptada pelo Cardeal Patriarca de Lisboa que sobre o aborto declarou pomposamente ser a posição da igreja uma posição de «ética fundamental» e não «religiosa».

Lamentando ainda «que a discussão esteja condicionada por algumas confusões, como a de limitar a questão a um problema religioso ou um direito da mulher». Na realidade quem está condicionado pela confusão do Papa e do Vaticano entre religião e Direito/ética é o próprio Policarpo. Nem a ética nem o Direito num estado laico são competência da Igreja nem a questão do aborto se reduz a uma questão dogma religioso versus direito da mulher. A redução da discussão sobre o aborto aos direitos da mulher em relação aos supostos direitos de «uma criança por nascer» é uma das muitas falácias usadas pela igreja nas suas campanhas terroristas contra o aborto.

Como aquela que a diocese de Coimbra já tem em curso, não obstante a prelecção falaciosa do cardeal patriarca de Lisboa. Um exemplo de puro terrorismo psicológico em que a diocese utiliza nos folhetos a fotografia de um bebé de meses que é filho de uma das signatárias do Movimento pela Despenalização da Interrupção da Gravidez.

Uma campanha repleta das falácias utilizadas pela ICAR na questão do aborto, já que não tem argumentos lógicos para defender a sua posição absurda, neste caso o chamado «apelo às emoções» em que se utiliza uma foto de um bébé já com alguns meses para pretender que um zigoto, embrião, ou feto – ou uma célula estaminal totipotente – normalmente referidos como a «criança ainda por nascer», são equivalentes ao bébé sorridente com que ornamentam os seus folhetos terroristas!

A outra falácia muito comum, muito bem desmontada neste artigo que recomendo, é a invocação do fantasma da «cultura da morte», com reminiscências explícitas ou implícitas ao nazismo, o reductio ad Hitlerorum usado e abusado para tudo pelos revisionistas históricos cristãos – esquecendo que Hitler criminalizou o aborto para as mães arianas. O que é um argumento absurdo por parte de quem admite como legítima a pena de morte e as mortes colaterais de guerras «justas» ou «injustas». E, como lembra o filósofo Pedro Madeira, é importante frisar que o facto de sermos a favor do aborto não implica, de modo algum, que sejamos a favor da pena de morte.

No cerne da questão do aborto, assim como na questão da investigação em células estaminais ou na clonagem terapêutica em que a argumentação da Igreja é exactamente a mesma, reside simplesmente a questão: têm direito incondicional à vida uma célula estaminal toti ou pluripotente*, um óvulo fertilizado e um embrião?

O resto da argumentação sobre o aborto é folclore ou falácias. Aquilo que se está a decidir na questão do aborto é se devemos ou não conferir o estatuto ético e legal de uma pessoa a uma célula estaminal do muco do nariz ou outra célula adulta qualquer- se estas forem alteradas para totipotentes – a um óvulo fertilizado e a um embrião.

Que a Igreja confira um valor acrescentado transcendente, a alma, a esta célula estaminal totipotente e considere que «Se alguém recusa a dignidade ao embrião [e a esta célula estaminal], então deveria negar também a dignidade à criança» esse é um problema que os crentes têm de enfrentar nas suas opções pessoais. Agora não podem impor a toda a sociedade, supostamente laica, os preconceitos e doutrinas da sua religião.

*De uma forma simples, e de acordo com a sua origem, podem dividir-se as células estaminais em dois grandes grupos: as células embrionárias e adultas. As células embrionárias são totipotentes, isto é, podem dar origem a todos os tipos celulares especializados. As células adultas são também indiferenciadas, porém, como se encontram em tecidos diferenciados, já são especializados, isto é, podem diferenciar-se apenas dentro da sua linhagem celular, pelo que são designadas de multipotentes. Apenas alguns tecidos apresentam células estaminais pelo que a sua utilização é limitada.

No caso da clonagem, terapêutica ou reprodutiva, é introduzido o ADN de uma célula diferenciada qualquer num óvulo a que foi retirado o material genético. No caso da ovelha Dolly foi introduzido o ADN retirado de uma célula mamária adulta, já diferenciada. Ou seja, a introdução num óvulo de ADN com genes diferenciados dá origem a uma célula estaminal totipotente. Célula estaminal que o Vaticano considera ter o mesmo estatuto de uma pessoa.

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