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Dia: 20 de Setembro, 2006

20 de Setembro, 2006 Ricardo Alves

A Ciência não é um "ismo"!

«Muitos argumentos criacionistas traçam um paralelo entre a teoria da evolução e o criacionismo. Chamam-lhe evolucionismo, e dizem que é apenas uma crença, uma questão de fé. É um argumento curioso, pois se posições tão contrárias derivam ambas da fé, então é óbvio que a fé não serve para resolver questões como a origem das espécies. Não é novidade, mas é estranho que os criacionistas queiram salientar a incapacidade da fé em resolver questões científicas.

Felizmente, a ciência não é um “­ismo”, como o criacionismo ou o cristianismo. Os “ismos” caracterizam-se pela crença num conjunto de hipóteses, e por isso facilmente se associam à fé. O criacionismo exige que se aceite como verdade que um deus criou os seres vivos, cada um de acordo com o seu tipo, e assim por diante. A ciência não exige que os seus praticantes se agarrem a uma hipótese em particular, o que é evidente na história das ideias científicas.

Há poucos séculos atrás, a teoria da criação era o modelo consensual da biologia. Um deus tinha criado os animais, tinha havido um dilúvio, e Noé tinha deixado os animais no monte Ararat. Mas algumas observações começaram a pôr em causa este modelo. Como teriam chegado as toupeiras marsupiais à Austrália? E aquelas espécies todas diferentes que viviam cada uma na sua ilha no meio do Pacífico? Muitas perguntas como estas levaram a rever a hipótese da criação, e começaram a surgir modelos de evolução. Erasmus Darwin, o avô do famoso Charles, propôs uma teoria de geração segundo a qual as espécies eram geradas pelo poder criador da matéria orgânica e não directamente por um deus. Mais tarde, Lamarck propôs que as espécies evoluíam herdando características adquiridas. Por exemplo, a girafa que mais vezes esticava o pescoço ficava com um pescoço mais comprido e os seus descendentes nasciam já com o pescoço mais comprido.

Quando Charles Darwin publicou “A Origem das Espécies”, já a biologia aceitava que as espécies evoluíam, e já se tinha rejeitado o modelo antigo das espécies sempre com a mesma forma. O que Darwin criou (e Wallace, independentemente) não foi a ideia de evolução mas sim do mecanismo pelo qual as espécies evoluem: a girafa não fica com o pescoço mais comprido, mas a girafa com o pescoço mais comprido tem mais filhos.

Mas Darwin tinha um problema. A sua teoria exigia que houvesse numa população de girafas com pescoço mais curto e outras com pescoço mais comprido. Ou seja, era necessário haver uma diversidade genética na população para que a selecção natural pudesse operar. Darwin propôs que erros na hereditariedade poderiam gerar esta diversidade, mas nessa altura pensava-se que as características dos pais se misturavam como fluidos contínuos para gerar os filhos, e esse processo de mistura rapidamente eliminaria a diversidade na população.

Esse problema foi resolvido com a redescoberta do trabalho de Mendel. Afinal as características dos pais não se misturam como fluidos, mas sim em pedaços discretos, os genes. Outros problemas também se foram resolvendo. Por exemplo, a geologia na época de Darwin afirmava ser necessário milhões de anos para explicar as formações geológicas, enquanto a física dizia ser impossível o Sol arder tanto tempo. Mas os físicos dessa altura desconheciam a radioactividade, e assumiam que o Sol ardia por processos químicos. Com a descoberta da radioactividade por Becquerel em 1896 o problema resolveu-se.

Este processo continuou por todo o século XX. Diferentes hipóteses, problemas que surgiam, problemas que se resolviam e levantavam novas hipóteses. A teoria da evolução hoje em dia é muito diferente da que Darwin propôs, e o processo não terminou.

E aqui reside a grande diferença entre a ciência e os “ismos”. O criacionismo é a crença num conjunto de respostas, enquanto que a ciência é um processo movido pelas perguntas. O criacionismo é fechado; quem deixar de crer que foi deus que criou os organismos deixa de ser criacionista. A ciência é aberta; eram tão biólogos os que favoreciam o modelo da criação no século XVII como os que favorecem a evolução no século XXI. O criacionismo é uma poça estagnada de crenças. A ciência é uma fonte de novas ideias.»

20 de Setembro, 2006 Palmira Silva

Bento XVI e a modernidade – um esclarecimento

Por definição, toda religião – toda fé – é intolerante, pois proclama uma verdade que não pode conviver pacificamente com outras que a negam. Mario Vargas Llosa

Antes de continuar a análise da relação antagónica de Ratzinger com a modernidade e com os valores civilizacionais correspondentes a essa modernidade – a democracia, a tolerância, a prevalência da ciência e da razão em relação à fé, os direitos humanos,especialmente os direitos das mulheres e a liberdade de opinião e expressão, etc. – gostaria de relembrar aos nossos leitores que esgrimem como argumento da superioridade do cristianismo em relação ao islamismo o facto de existir liberdade de religião e não existir perseguição religiosa nos países de maioria cristã, que estão a cair numa falácia causal ou post hoc ergo propter hoc.

Isto é, não é por serem países de maioria cristã que tal acontece, mas simplesmente porque são países democráticos assentes num conceito de estado moderno, onde, depois de muitas lutas, algumas sangrentas, com a Igreja Católica, se conseguiu a separação religião estado que não existe na esmagadora maioria dos países de maioria islâmica.

Se olharmos criticamente para a História, a violência na defesa e imposição da fé que se associa actualmente ao Islão mimifica na perfeição o que acontecia no Ocidente quando esta separação não existia. A «ordem de divulgar a fé usando a espada» não é exclusivo do Islão, foi indissociável do cristianismo até muito na tarde na história e não foi abandonada por vontade da Igreja, foi imposta pelas transformações sociais decorrentes do Iluminismo, por sua vez herdeiro da Renascença e do humanismo renascentista. Iluminismo que enfatizava a razão e a ciência como formas de explicar o universo, o alvo principal de críticas por Ratzinger na palestra da qual apenas os três parágrafos referentes ao Islão têm merecido análises mas que importa não esquecer, já que é esta crítica que nos permite apreciar a total dissociação de Ratzinger da modernidade e o seu manifesto desejo de retorno ao integrismo católico, isto é, à cristandade.

Apenas a laicidade inerente ao nosso modelo democrático impede que o fanatismo/fundamentalismo cristão se exprima da mesma forma que o equivalente islâmico. Basta pensar nas pretensões dos fanáticos cristãos americanos, da imposição de um direito baseado na «lei» bíblica, que prevê penas de morte para adultério, «sodomia», apostasia, heresia, aborto e demais «pecados», para confirmarmos que não existe qualquer diferença entre ambos os fundamentalismos, as suas manifestações apenas são diferentes porque se inserem em países com modelos políticos diferentes e a laicidade reprime as demências e as orgias violentas de fé a que temos assistido por parte dos fundamentalistas islâmicos!

A razão pela qual o Islão se mostra resistente à modernidade, isto é, à tendência geral de secularização, só pode ser entendida à luz do pós-colonialismo e da emergência do nacionalismo árabe, uma reacção à aculturação colonianista recuperando uma utopia – mais um «entre» bhabhiano (de Homi Bhabha), isto é, uma tentativa de recuperação de uma cultura desaparecida há séculos e como tal construída no imaginário – baseada no Islão político. Uma leitura de Khaled Ahmed ou mesmo Bassam Tibi ajuda a perceber porquê.

Por outro lado, em relação ao argumento tão gasto que já maça, que confunde laicidade com estalinismo ou maoismo, gostaria apenas de relembrar que o totalitarismo político não tem nada a ver com laicidade, na realidade é uma cópia fiel do totalitarismo religioso, caracterizada por um culto de personalidade do ditador – quasi considerado um «deus», basta pensar no culto a Lenin, Stalin, Mao e actualmente a Fidel ou Kim Jong II – e as ideologias políticas são dogmas inquestionáveis, verdades absolutas apenas questionadas por «hereges» merecedores de «fogueiras» sortidas. O totalitarismo político não dispensa sequer cerimónias «religiosas» como comícios políticos e demais rituais de comunhão em que os «fiéis» papagueiam palavras de ordem em tudo análogas a orações…

Assim, como já escrevi, todos os totalitarismos, religiosos ou políticos, assentam em três pilares:

1) A detenção de uma verdade «absoluta», à qual todos devem se submeter, mesmo os descrentes nesta suposta verdade;
2) A certeza num destino glorioso para os justos/eleitos;
3) Um grande inimigo que é necessário diabolizar, sendo a suposta perseguição por este inimigo o nexus da angariação e fidelização de seguidores.

A palestra de Ratzinger é uma ilustração do ponto 3, em que o «inimigo» é identificado com todos os que não aceitam a «supremacia» da razão. Razão que para Ratzinger, que distribui generosamente epitetos de irracionalidade a todas as mundivisões que não a sua, reside apenas no catolicismo. Apenas o catolicismo é racional e como tal a ele todos se devem submeter é tão só a mensagem que Ratzinger quis transmitir nesta palestra…

Assim, como para todos os totalitarismos, o homem livre e racional é o principal inimigo para Ratzinger, que declarou guerra à modernidade, isto é, à «ditadura do relativismo» decorrente do que apelida de «secularismo ideológico» e «profanidade total», a separação entre a igreja e o estado. Ratzinger que se lamuria estarem os fundamentalistas católicos sob o «jugo» de uma «ditadura» que o impede, cruzado empenhado contra as liberdades «imorais» e representante mor desses fundamentalistas, de impor a sua pseudo-moralidade a todos.

Assim, este papado tem sido apenas uma sequência de ululações que denigrem e rejeitam a liberdade, a democracia, a tolerância e o pluralismo, a tal «ditadura» do relativismo, pretendendo que só a obediência cega a um mito, Deus – para o ditador do Vaticano a sujeição total aos seus ditames imbecis – é a verdadeira liberdade.