O Papa Rätzinger, que teve o apoio do Espírito Santo no conclave que o fez papa, o entusiasmo do Opus Dei que temia a despromoção da prelatura e as orações dos beatos para quem um papa qualquer é sempre santo, não teve quem lhe revisse o discurso, o avisasse das consequências e o prevenisse dos seus próprios demónios.
Todos os que não estão toldados pela hóstia ou em estado cataléptico com incenso e orações, sabem que os livros sagrados são manuais de ódio ao serviço das rivalidades étnicas e velhas convulsões tribais, guardados e aproveitados pela clericanalha para uma vida de fausto e ociosidade.
Não há fanatismo maior nem violência mais truculenta do que a que brota dos livros sagrados e dos santos doutores que os interpretam e promovem como bons.
A Irmã Lúcia, tão chegada a JP2, abandonou B16. Surpreende que quem previu o fim da guerra e o tiro na batina do papa polaco, não tenha reparado, nas suas premonições, no tiro no pé do pastor alemão.
Santo Escrivá a quem a ICAR esqueceu o mau feitio, o apoio a Franco e a irascibilidade a troco dos fartos cabedais que o taumaturgo canalizou em vida para o Vaticano, não fez o milagre de desligar o microfone da universidade onde o Papa bolçou o ódio de um imperador cristão à mourama como os mullahs soem fazer com o rancor do pastor de camelos.
Em vez da laicidade que nos salve do belicismo religioso, é o proselitismo que renasce numa espiral de ódio de um tira-teimas sobre qual é o Deus melhor.
Sob o cadáver de um mito, milhões de seres humanos estão em risco de se transformarem precocemente em cadáveres.
O cerne das preocupações de Ratzinger, expressas nos dois livros que já referi, Without Roots: The West, Relativism, Christianity, Islam e «Values in Times of Upheaval», é o facto de que na Europa não só o catolicismo está em remissão como a religião mais dinâmica é o islamismo. Crescimento que ele atribui ao « relativismo» europeu que permite a construção de mesquitas, sinagogas e templos sortidos e a proselitização aberta de outras religiões – o que, não obstante os constantes protestos do Vaticano, não se verifica em países islâmicos, nalguns dos quais a mera conversão a outra religião dita uma pena de morte.
Assim, a Europa está «surda a Deus» – que para Ratzinger é equivalente a ignorar os dislates debitados pelo Vaticano, o único intérprete autorizado do «livro sagrado» que contém tantas ou mais barbaridades que o livro sagrado da maior religião da concorrência- e o propósito prioritário do Vaticano é a re-evangelização da Europa, objectivo a que Ratzinger se devota desde a sua eleição, denunciando estridentemente o suposto «relativismo» que assolou a Europa, o secularismo, a laicidade e a causa última de todas estas «blasfémias», aquela em que tem assestado baterias, a ciência «que tornou Deus supérfluo».
O Papa, que, como exprime em outro livro, Fé, verdade, tolerância, considera a sua como a única religião «verdadeira» e todas as outras erradas, aflige-se com o pluralismo, tolerância e liberdade de religião – que iguala a relativismo – que «infectam» o outrora bastião da cristandade. Assim, a actual cultura herdeira do iluminismo e não da cristandade, ateisticamente assente nos direitos humanos e na tolerância e não na «vontade» divina (interpretada e debitada pelo Vaticano), que explica cientificamente o mundo sem necessitar de Deus e que desenvolve uma ética e uma moral humanistas à revelia do emanado de Roma, é o inimigo da fé cristã que urge combater.
John Wilkins, o ex-editor do periódico católico londrino The Tablet, resume magistralmente o que acabei de dizer:
«Este Papa não aceitou de facto o pluralismo. Ele confunde-o com relativismo».
Apesar das suas ululantes e constantes exortações aos católicos europeus para seguirem estritamente os ditames do Vaticano, da afirmação de que não é um maçador insuportável quem o faz e da advertência de que o catolicismo não é uma «religião faça você mesmo», as suas constantes homilias condenando os erros da modernidade, a tal «ditadura do relativismo» que tanto esgrime, não surtem qualquer efeito e os católicos europeus são na sua maioria «católicos de café» ou católicos light, que não ligam aos anacronismos que este Papa quer impor, isto é, um regresso aos gloriosos tempos da cristandade medieval.
Imposições claramente expressas na sua primeira encíclica que, como alertei na altura, depois de arrumar na primeira parte a ortodoxia da res privada, explicita na segunda parte o que tem sido tema do seu papado, a denúncia da laicidade e das dissidências «sociais» dos católicos. Segunda parte da encíclica que versa sobre como deve ser ordenada a res publica, a polis, mais concretamente, quais devem ser os papéis do Estado e da Igreja na sociedade.
A guerra anti-modernidade do Vaticano não encontra assim eco nos católicos europeus, para grande consternação de Ratzinger. Mas é partilhada por todos os dignitários da concorrência, inclusive a islâmica, que tentam manter os seus fiéis longe das tentações da modernidade e elegem igualmente a laicidade e a ciência como os grandes inimigos da fé. Mas os dignitários islâmicos têm mais sucesso nesta guerra porque associam a modernidade ao execrado Ocidente e conseguem disfarçar o seu receio de perderem clientela com a suposta luta contra a «ocidentalização».
Ou seja, Ratzinger tem poucas hipóteses de arregimentar soldados para esta guerra anti-modernidade, de encontrar uma causa para unir os europeus sob o estandarte do Vaticano. Resta-lhe apenas a fórmula clássica, inventar um inimigo da civilização ocidental, o ideólogo do mal, desumanizá-lo e exponenciar o ódio contra esse inimigo, transformando-o num sentimento europeísta que deixe em segundo plano tudo o resto e esconda o seu real propósito obscurantista.
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