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Dia: 22 de Agosto, 2006

22 de Agosto, 2006 Palmira Silva

Moral em tempo de SIDA

Durante a recente XVI Conferência Internacional sobre Sida, que decorreu em Toronto, Canadá, o ex-presidente dos Estados Unidos Bill Clinton não foi o único mas certamente foi o mais proeminente dos oradores a criticar a política da administração norte-americana em relação ao combate à SIDA, mui cristamente focada em programas exclusivamente de abstinência.

Bill Clinton afirmou o que todos os que trabalham na área sabem:

«As evidências apontam que os programas de abstinência não têm sucesso. Os programas de abstinência são um erro».

Na realidade, as afirmações de Bill Clinton são corroboradas por Beatrice Were da ActionAid Uganda, e de Leigh Anne Shafer do Medical Research Council. Esta cientista reportou o aumento das infecções com HIV no Uganda, um exemplo de sucesso no combate à disseminação do HIV graças ao programa ABC (abstem-te, sê fiel e, se não seguires as duas primeiras, usa preservativo), até à intervenção dos fundamentalistas cristãos.

Os moralistas cristãos, nomeadamente da Casa Branca, usaram falaciosamente os excelentes resultados ugandeses no combate à SIDA assumindo que apenas o A&B (abstinência e fidelidade) do programa era seguido. O que está longe da realidade! E G.W. Bush conseguiu que fosse aprovado um plano de combate à SIDA no continente africano em que os programas exclusivamente A&B recebem a fatia grande do orçamento. Pondo em perigo o combate à disseminação deste flagelo.

Os grupos que receberam a quase totalidade do financiamento, como o «True Love Waits», em colaboração com várias igrejas organizaram orgias ululantes de fé destinadas a promover a abstinência e a fidelidade, difundindo, como é habitual nos fanáticos cristãos, desinformação e mentiras óbvias como «Os preservativos são completamente ineficientes». O resultado desta tão cristã actuação, que execra o uso de preservativos e os comportamentos «imorais», traduz-se no aumento das taxas de infecção com o HIV e na estigmatização dos infectados.

A imoralidade criminosa cristã pode ser apreciada na sua real dimensão se considerarmos que, de acordo com as declarações do Cardeal Javier Lozano Barragán, cerca de um quarto, mais concretamente «26,7% dos centros no mundo para tratar os enfermos de HIV/Sida, pertencem à Igreja Católica». Ou seja, que a prevenção da SIDA, especialmente em África, está nas mãos de devotos cristãos, evangélicos e católicos, unânimes na condenação do preservativo.

Segundo Barragán «As principais acções que realizamos na formação referem-se aos profissionais da saúde, aos sacerdotes, religiosos e religiosas, aos próprios enfermos, às famílias e à juventude. Na prevenção insistimos na formação e educação para comportamentos destinados a evitar a pandemia».

Claro que de acordo com a (i)moral católica o preservativo é um anátema nunca admitido como medida de prevenção. Assim, a somar aos grupos com financiamento federal americano temos mais de 1/4 dos centros de atendimento a infectados com o HIV em que os pacientes são devidamente informados da ineficácia do uso do preservativo e desaconselhados a usá-lo, mesmo no caso de casais em que apenas um membro está infectado.

A prevenção e controle desta catástofre só será possível quando a religião, pelo menos a cristã, for totalmente eliminada dos programas e centros a ela devotados. Todos os cientistas presentes na Conferência foram unânimes na recomendação do abandono de programas, não só completamente ineficazes como contraproducentes, focados na abstinência. Faltou dizer que enquanto as instituições cristãs forem financiadas, com dinheiros públicos ou contribuições particulares, não há quaisquer hipóteses deste flagelo ser controlado!

22 de Agosto, 2006 Palmira Silva

O gene do altruísmo

Há uns tempos tinha referido que em determinados casos as bactérias sacrificam a sua individualidade ao grupo social e toda uma colónia se comporta como um macro organismo. Ou seja, mesmo organismos unicelulares têm «consciência» social e são capazes de comportamentos morais em prol da comunidade.

Como indicado no post anterior, o comportamento moral humano não tem nada a ver com religião e é apenas um efeito colatateral da nossa evolução biológica, não sendo necessário invocar qualquer impossibilidade lógica e suas «revelações» para o entender.

Alguns artigos recentes reforçam a origem biológica da moral ao lançar luz sobre a evolução da generosidade e cooperação entre elementos de uma espécie.

No artigo «The Evolutionary Origin of an Altruistic Gene», publicado em Maio último na revista Molecular Biology and Evolution, os autores sugerem que pelo menos alguns genes altruistas evoluiram de genes que suprimiam actividades biológicas como resposta a alterações no meio ambiente, nomeadamente escassez de recursos.

Os cientistas identificaram um gene altruista de uma espécie primitiva multi celular, Volvox carterii, e o equivalente num organismo unicelular semelhante ao que lhe deu origem.

A alga Volvox, que graças à sua simplicidade é considerada o melhor exemplo de um acontecimento evolucionário determinante, o advento da multi celularidade, é constituida por cerca de 2000 células ligadas numa forma globular. Dessas 2000 células apenas 16 se reproduzem. Isto é, como em muitos organismos multicelulares, há uma divisão das células em «germ cells» -que se reproduzem – e células somáticas que não se reproduzem.

Esta divisão corresponde a uma forma profunda de altruismo. Ao não se reproduzirem as células somáticas «suicidam-se» evolucionariamente para beneficiar o grupo. Algo muito semelhante ao que acontece em colónias de insectos com as suas obreiras estéreis.

Na Volvox, o gene RegA, presente nos dois tipos de células mas activo apenas nas células somáticas, é o causador deste altruismo reprodutivo inibindo o crescimento celular.

Um gene muito análogo ao RegA foi encontrado na alga unicelular Chlamydomonas reinhardtii, que se considera muito próxima do ancestral da Volvox. Este gene, identificado como Crsc13, inibe o crescimento celular – impedindo a reprodução – quando há escassez de recursos, nomeadamente é activado quando não há luz, necessária à fotossintese.

No organismo multicelular este gene funciona como um gene altruista simplesmente por alteração do mecanismo de activação e desactivação do gene. Em termos evolucionários, como indica uma das autoras do texto, não deve existir uma diferença fundamental entre o altruísmo da Volvox e a generosidade humana. Ambos devem ter origem em mecanismos similares, ou seja, resposta a alterações no meio ambiente.

O mesmo mecanismo que transforma membros anti-sociais da bactéria Myxococcus xanthus em «cidadãos» exemplares, dotados de uma elevada consciência social. Como escreve Kevin Foster da Harvard University num comentário a este artigo, publicado na Nature em Maio deste ano, quando a sociedade ameaça desintegração devido a comportamentos anti-sociais, a evolução favorece mutações que recuperem o trabalho de equipa necessário à sobrevivência da espécie.

Ou seja, a ciência, mais uma vez, demonstra a vacuidade das pretensões das religiões, que reinvidicam estes comportamentos como indissociáveis da crença, ululam os perigos do ateísmo afirmando que sem crença em Deus não há moral. Pessoalmente considero exactamente o contrário, isto é, um comportamento justificado com a «lei divina» é um comportamento amoral – sem valores morais. Por exemplo, dizer que matar é errado porque Deus o condena é amoral porque valoriza não a vida humana mas a obediência a Deus. Assim, quando a obediência a um mito colide com a preservação da vida humana é a obediência a esse mito e às suas supostas «revelações» que prevalece. Um exemplo flagrante desta amoralidade, para além do terrorismo de inspiração religiosa, é a posição criminosa da Igreja católica em relação ao uso profiláctico do preservativo ou em relação ao aborto em qualquer circunstância…

Assim, a ciência reforça o perigo que as religiões constituem para a sobrevivência da espécie humana já que, vociferando contra o «modernismo» relativista e os comportamentos «contrários à lei divina», tentam impor a todos as suas aberrações anacrónicas e impedem efectivamente o desenvolvimento de comportamentos necessários não só à evolução como à sobrevivência da espécie.