«O antigo presidente polaco Lech Walesa ameaçou na sexta-feira renunciar ao título de cidadão honorário de Gdansk (antiga Danzig alemã) para não compartilhar a distinção com o escritor alemão Günter Grass, que confessou há uma semana ter pertencido às Waffen-SS». (DN, hoje, pág. 32).
Admite-se que Walesa, por coerência, renuncie ao catolicismo, para não compartilhar a fé com o Papa Rätzinger que igualmente pertenceu às SS, a não ser que a religião seja menos importante para o devoto Walesa do que uma condecoração.
Do ponto de vista neurofilogenético, a inteligência das espécies tem sido avaliada pela extensão das áreas associativas corticais, pela massa cerebral e especialmente pela relação massa cerebral/massa corporal ou índice de encefalização (I.E.), o indicador favorito da maioria dos antropólogos.
Apesar de este índice não ser um indicador absoluto de inteligência, especialmente se aplicado a pequenos animais, cujas massas corporal e encefálica são acentuadamente baixas – por exemplo um rato*, com uma massa cerebral de 0.4 g e uma massa corporal de 0.012 kg tem um índice muito superior ao do Homo sapiens – é interessante analisar a evolução deste índice na árvore filogenética humana. Na tabela que se segue são indicados valores médios usando uma das muitas definições de IE.
Espécie |
Capacidade craniana /cm3 |
IE |
A. afarensis |
414 |
3.1 |
A. africanus |
441 |
3.4 |
P. boisei |
530 |
3.5 |
P. robustus |
530 |
3.5 |
H. habilis |
640 |
4.0 |
H. erectus (Java) |
937 |
5.5 |
Homo sapiens neanderthalensisH. neanderthalensisHomo sapiens neanderthalensis |
1450 |
7.8 |
H. sapiens |
1350 |
7.6 |
P. troglodytes |
395 |
2.6 |
Ou seja, uma análise desta tabela confirma que a evolução do homem é igualmente a evolução do cérebro, isto é, da encefalização. Este aumento da dimensão do volume craniano associado ao bipedalismo teve algumas consequências não despiciendas, nomeadamente no desenvolvimento do nosso comportamento moral e social.
Como escrevi há uns tempos, o homem é o mamífero superior cujas crias nascem mais impreparadas para o mundo, numa fase em que o seu cérebro mal começou a desenvolver-se. Isto é, nos humanos o cérebro continua a crescer com taxas próximas às fetais durante cerca de 1 ano; nos outros mamíferos (incluindo primatas) o crescimento rápido do cérebro ocorre apenas antes do parto.
De facto, o desenvolvimento de um cérebro (e crânio) maior não acarretou apenas vantagens. Por um lado, um cérebro maior necessita de mais energia – o nosso cérebro consome cerca de 1/5 da energia que produzimos – ou seja, implica a necessidade de uma dieta mais energética, e por outro para um bipedalismo eficiente a pélvis é necessariamente mais estreita.
O parto é assim um acontecimento muito arriscado apenas nos humanos pois para além de um crânio do nascituro comparativamente maior e uma pélvis materna menor, durante o nascimento a cabeça do feto tem de efectuar uma rotação complexa. Ou seja, mesmo com o nascimento numa fase que podemos considerar fetal, a cabeça do nascituro é muitas vezes demasiado grande em relação à pélvis da mãe.
Na realidade todos os nascimentos humanos, como qualquer estudante de biologia sabe, poder-se-iam considerar abortos de fetos viáveis. Esse é quiçá o acaso da selecção natural que resultou no maior trunfo da Humanidade, aquele que distingue o ser do Homem do ser dos demais animais, já que a selecção natural privilegiou os exemplares capazes de dar à luz fetos viáveis sensivelmente a meio do tempo de gestação «normal», fetos com poucas conexões neuronais estabelecidas mas a cujo nascimento uma maior percentagem de gestantes sobreviviam. E é um trunfo que a evolução proporcionou porque o desenvolvimento cerebral extra-uterino é muito mais rico em estímulos o que permite uma «programação» francamente mais diversa e flexível que a possível uterinamente.
Por outro lado, os perigos associados ao parto humano levaram ao desenvolvimento de comportamentos sociais únicos nos humanos, nomeadamente no que respeita à necessidade de cooperação entre as fêmeas de um dado grupo e à relação mãe-cria. Especialmente interessante de analisar no contexto da apologética cristã, no que concerne não só ao desenvolvimento moral como igualmente ao advento da dor no parto, atribuído ao castigo «divino» à mítica Eva depois da dentadinha no fruto da árvore do conhecimento!
*O cérebro humano apresenta uma superfície convoluta muito rara – com uma área neocortical de ~2275 cm2 – que é a zona utilizada para a resolução de problemas. A superfície do cérebro do rato é lisa. Ou seja, não é apenas o IE que interessa mas igualmente a «composição» do cérebro.
O recente artigo da Nature que identifica uma zona do genoma humano que poderá ser co-responsável pelo desenvolvimento cerebral humano fez-me recuperar o post que escrevi sobre o projecto do Genoma do Neanderthal.
O que nos torna diferente das outras espécies animais são as capacidades possibilitadas por um cérebro único no reino animal. Perceber a evolução humana é assim perceber o processo de evolução do cérebro humano, ou encefalização.
O bipedalismo teve um papel crucial na expansão do neocortex humano já que não só a posição erecta possibilitava mais estímulos visuais – o que implicava o desenvolvimento de uma maior cérebro necessário para processar este aumento de informação – como a maior versatilidade de movimentos implicava uma expansão cortical, nomeadamente da área de Broca, para controlar estes novos movimentos.
Um estudo recente – que descreve que os macacos rhesus usam regiões do cérebro correspondentes aos principais centros de linguagem humanos, as áreas de Broca e Wernickes, no tratamento das vocalizações de macacos da mesma espécie – publicado na Nature NeuroScience (reservado a assinantes), propõe que os mecanismos neuronais necessários à evolução da linguagem humana estavam presentes no ancestral comum de humanos e restantes primatas.
Ou seja, corrobora não só Stephen J. Gould, que argumentava ser a linguagem um sub-produto do processo evolucionário e que boa parte do que nos distingue dos restantes animais são consequências colaterais do processo de encefalização, como a recente hipótese de Chomsky e colaboradores sobre a evolução da linguagem humana. Chomsky sugere que a maioria dos aspectos da linguagem humana são partilhados com os modos de comunicação de outras espécies mas que alguns pontos específicos são um produto recente da evolução do cérebro humano e são únicos ao Homo sapiens.
O nosso conhecimento da evolução do cérebro humano é, no entanto, rudimentar, e o pouco que sabemos deve-se a estudos comparados da neuroanatomia de espécies extintas. De igual forma, pouco se sabe sobre a evolução da especialização do cérebro humano e concumitantes capacidades comportamentais e cognitivas únicas aos humanos. A genética molecular é assim uma das poucas técnicas disponíveis para elucidar esta questão e por isso a sequenciação do genoma do Neanderthal será um marco importante, já que acredito ser a diferença entre os cérebros do Neanderthal e do sapiens a razão do sucesso da nossa espécie.
Já foram identificados alguns genes envolvidos no processo de encefalização que ocorreu durante a evolução humana. Dois desses genes são o microcephalin e o ASPM (abnormal spindle-like microcephaly associated). Uma examinação do polimorfismo destes genes indica que certas variantes surgiram há aproximadamente 5 800 e 37 000 anos respectivamente, ou seja, muito depois do aparecimento dos homens modernos, o que ocorreu há cerca de 200 000 anos. O aparecimento da variante da microcephalin coincide com o desenvolvimento da agricultura e o uso de linguagem escrita pelo que é tentador correlacionar este gene com a cognição humana.
O GLUD2 é outro gene «implicado» na evolução do cérebro humano. Este gene, que surgiu nos hominídeos há cerca de 18-23 milhões de anos, codifica a enzima glutamato desidrogenase (GDH), uma enzima que regula a concentração de glutamato e permite maior actividade neuronal.
A comparação dos genomas humano e do Neanderthal não irá elucidar as diferenças anatómicas ou funcionais entre o cérebro deste e o do sapiens, mas permitirá uma análise dos acontecimentos a nível molecular subjacentes à evolução do cérebro humano. Especialmente interessantes serão a análise e comparação não só de genes tais como o microcephalin, ASPM, GLUD2 ou HAR1F , como das sequências que regulam a respectiva expressão.
(continua)
O Diário de uns ateus é o blogue de uma comunidade de ateus e ateias portugueses fundadores da Associação Ateísta Portuguesa. O primeiro domínio foi o ateismo.net, que deu origem ao Diário Ateísta, um dos primeiros blogues portugueses. Hoje, este é um espaço de divulgação de opinião e comentário pessoal daqueles que aqui colaboram. Todos os textos publicados neste espaço são da exclusiva responsabilidade dos autores e não representam necessariamente as posições da Associação Ateísta Portuguesa.