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Dia: 10 de Fevereiro, 2006

10 de Fevereiro, 2006 Ricardo Alves

Por um punhado de cartunes: aproveitamentos e hipocrisias

É óbvio que a crise dos cartunes tem sido aproveitada por partes interessadas. No entanto, não se tem frisado suficientemente que a crise convém a dois lados, só conjunturalmente opostos: aos xenófobos da Dinamarca e de alhures na Europa (a «nossa» extrema-direita) e aos fascistas islâmicos do Médio Oriente e vizinhanças (a extrema-direita «deles»). A primeira gostaria que os imigrantes (principalmente muçulmanos na Dinamarca, na França ou no Reino Unido) partissem, e deleita-se com a imagem de intolerância e violência que alguns muçulmanos estão (voluntariamente) a dar de si próprios; a segunda sonha com o califado mundial após a queda dos regimes não islamistas e «pró-americanos» da região, e deleita-se por apresentar os europeus como tolerantes com a blasfémia (o que é verdade) e xenófobos (o que depende dos casos).

Permanecem como alguns dos sinais mais visíveis da instrumentalização desta crise os ataques a embaixadas na Síria e no Líbano (em ambos os casos, aparentemente orquestrados por alguém em Damasco) e em Teerão. Outro sinal serão os célebres três cartunes que não fizeram parte dos doze publicados pelo Jylllands-Posten, cuja origem permanece incerta (eu apostaria na extrema-direita europeia…) e que foram divulgados por imãs apostados na exacerbação da polémica. A crise serve também aos promotores da teoria e prática da «guerra de civilizações» enquanto polarização entre cristãos e muçulmanos, entre os quais se contam Bin Laden e Samuel Huntington. (Como já escrevi, a polarização real é entre laicidade e clericalismo, liberdade de expressão e delito de blasfémia.)

Neste cenário, há hipocrisia a rodos dos dois lados. À esquerda, há quem tenha satirizado o cristianismo no passado e tenha agora descoberto pruridos em ridicularizar o Islão; e à direita, há quem seja incapaz de criticar o catolicismo e tenha descoberto subitamente o totalitarismo da religião… islâmica. Evidentemente, existe também quem critique essas duas religiões e as mais que nos aborrecerem, e é do lado desses que eu estou.

A situação tem o aspecto irritante (que para mim é habitual…) de nos quererem enfiar numa dicotomia em que não encaixamos. Mas, como ateus e anticlericais, há que repetir que as multidões de muçulmanos em fúria instigadas por imãs são a imagem perfeita do rebanho acrítico e obediente que tanta religião produz e que tanto temos denunciado. E que a ideia de que as nossas comunidades políticas devem ser «clubes cristãos» é um objectivo (que não pode avançar um milímetro) do clericalismo índigena.

Aos muçulmanos, este é o momento de lhes recomendar calma, sentido de humor e, sobretudo, capacidade de encaixe. E já agora, seria conveniente que se distanciassem dos extremistas que se apoiam no Islão (se não for demasiadamente incómodo…). Aos que subitamente se interessaram pela liberdade de expressão, gostaria de perguntar, ingenuamente, se alinhariam na eliminação da alínea b do artigo 252 do Código Penal? (Só para saber quão longe vai o apego ao direito à blasfémia…)