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Dia: 23 de Outubro, 2005

23 de Outubro, 2005 Carlos Esperança

A burla das religiões

Quem pode levar a sério as religiões do livro? Moisés, Jesus ou Maomé não suscitaram tanto entusiasmo como as actuais estrelas pop, o Papa JP2 ou Fidel de Castro. Nenhum foi tão amado como o sanguinário Ayatollah Khomeini ou o demente Kim Il Sung II. No entanto, têm seitas com milhões de devotos que se reclamam da sua inspiração.

Figo tem mais admiradores do que Jesus teve. Cristiano Ronaldo, se não for afectado por escândalos sexuais, tem um futuro mais promissor do que se augurava a JC antes de Constantino (o 13.º apóstolo) ter entrado no negócio na primeira metade do séc. IV e mandado seleccionar a Eusébio de Cesareia evangelhos coerentes a partir de 27 versões. O Novo Testamento é menor que os Evangelhos apócrifos. Bin Laden tem mais admiradores do que Maomé teve em vida.

Os livros ditos sagrados são pouco sérios, violentos e baseados na tradição oral. A Tora foi escrita em data muito posterior à que a tradição lhe atribui. Os evangelistas nunca viram Jesus, profissional da pregação e dos milagres – uma ocupação alternativa.

O Corão foi escrito um quarto de século após a morte de Maomé e Marwan, governador de Medina, «encarregou-se de recolher, primeiro, e destruir e queimar, depois, várias versões, a fim de deixar apenas uma e evitar que a confrontação histórica revelasse a falsificação humana»[CE1] .

O mundo é muito mais antigo do que Deus julgava e a história da humanidade nada tem a ver com a sua alegada semana de trabalho. A reprodução humana nunca foi repetível pelo método divino e é bem mais eficaz e agradável do que Deus gosta.

A superstição, ignorância e medo estão na base das religiões monoteístas. A morte é a pulsão que alimenta a fé e os padres os charlatães que a promovem.

Não pode ser levado a sério quem garante que sinais cabalísticos fazem da hóstia «verdadeiramente, realmente, substancialmente» o corpo de Cristo e do vinho o sangue. Apesar do desejo cristão de que a ciência fosse abolida, qualquer laboratório confirma que, antes e depois da transubstanciação, as propriedades físicas e químicas do pão e do vinho permanecem inalteradas.

A ICAR só acertou no futuro ao desprezar o Espírito Santo. Evitou complicações com as autoridades sanitárias na sequência da actual gripe das aves. Nem o Concílio que entronizou B16 o deixou entrar. O Opus Dei dá mais luz, tem mais poder e não é fácil que a gripe das aves dizime tal fauna.

[CE1] Traité d’athéologie, Michel Onfray – Ed. Grasset 2005

23 de Outubro, 2005 Mariana de Oliveira

Aborto e Direito Penal

A questão que actualmente se coloca no aborto é uma questão jurídica e deve ser tratada como tal.

Para começar, há que esclarecer a função do Direito Penal num Estado de Direito Democrático. O Direito Penal não é, nem deve ser, um direito penal de prevenção de riscos especiais e longínquos e de promoção de finalidades específicas da política estadual. Ele é, isso sim, um direito de tutela de bens jurídicos, ou seja, de preservação das condições indispensáveis da livre realização, dentro do possível, da personalidade de cada indivíduo no seio da comunidade.

Isto conduz à questão da legitimação do poder punitivo do Estado. Tal poder tem fonte na exigência de que o Estado só deve retirar a cada pessoa o mínimo dos seus direitos, liberdades e garantias indispensáveis ao bom funcionamento da comunidade. A isto conduz igualmente o carácter pluralista e laico do Estado de Direito, que o vincule a que só recorra aos seus meios punitivos próprios para tutela de bens de relevante importância da pessoa e da sociedade e jamais para instauração e reforço de ordens axiológicas transcendentes de carácter religioso, político, moral ou cultural. O Direito Penal é, assim, um direito de «ultima ratio».

Quanto ao crime de aborto em especial, o bem jurídico que está em causa não é a vida humana, mas sim a vida intra-uterina. Actualmente, entre nós, vigora o princípio da punibilidade do crime de aborto e só nos casos previstos no art. 142º do Código Penal é admitida a IVG (causas de exclusão da culpa). Assim, nestes casos, a conduta torna-se lícita. Há aqui um conflito de valores e é esta a estrutura base comum a todas as causas de justificação e só considerando tais condutas como licitas trará coerência à exigência da intervenção de um médico e ao apoio por parte do Estado.

O princípio constitucional da inviolabilidade da vida humana tem aqui refracções e há quem adira a uma concepção absolutizadora da vida humana, defendendo também uma unidade entre vida autónoma e vida intra-uterina, não existindo aqui qualquer espaço para a permissão da IVG. No entanto, o Direito Penal não é compatível com aquela santificação da vida (neste caso, seria inadmissível a legítima defesa e o estado de necessidade) e é notório que o tratamento da vida intra-uterina é diferente do da vida autónoma. Na verdade, os crimes que tutelam aqueles dois bens jurídicos encontram-se em capítulos diferentes, têm diferentes epígrafes, diferentes molduras penais, a tentativa não é punível nos crimes contra a vida intra-uterina, a negligência não é punida e não há agravamento pelo resultado – isto de um ponto de vista penal. De um ponto de vista constitucional, os Direitos Liberdades e Garantias não valem directamente e em pleno para a vida intra-uterina, há aqui uma autonomização de dois bens jurídicos.

Ainda dentro de um ponto de vista constitucional, relativamente à hipótese de um imperativo de criminalização constante na Constituição da República por via da defesa da vida, há que notar que o legislador constitucional não apontou expressamente a necessidade de intervenção penal neste assunto particular. Desta forma, onde não existam tais injunções expressas, não é legítimo deduzir sem mais a exigência de criminalização dos comportamentos violadores de tal direito fundamental. E isto porque não deve ser ultrapassado o princípio da necessidade.

A proposta apresentada pelo doutor Figueiredo Dias, o pai do Código Penal, consiste num modelo misto das indicações e prazos mais liberalizante. Até às 10 ou 12 semanas (12 semanas porque o embrião passa a feto), a gravidez pode ser livremente interrompida. Até às 16 semanas, poderia haver interrupção com indicação terapêutica em sentido amplo ou criminológico. Até às 24 semanas, o aborto seria admitido por indicação fetopática em sentido estrito. Depois das 24 semanas, se o feto fosse inviável (indicação fetopática em sentido amplo) ou houvesse necessidade de remover um perigo de morte ou lesão grave e irreversível no corpo ou saúde da mulher grávida. Neste modelo, seria supérflua uma indicação económico-social. Seria um sistema honesto face à realidade actual: seria mais honesto para a grávida, garantira o nascimento de um maior número de nascituros e que estes vivessem a vida mais dignamente possível. É que aqui, a mãe teria mais tempo para ponderar e acabaria por ser vencida pelas contra-motivações.

Também não é possível falar no interesse do nascituro e do da grávida como se fossem realidades distintas. Os interesses do nascituro só podem ser satisfeitos no interesse e por intermédio da grávida (há uma dualidade na unidade: seres diferentes, mas um suporta o outro). Durante algum tempo, deve predominar a unidade da grávida e a decisão deve caber a ela. Depois, a dualidade predomina e só em casos contados deve o interesse do nascituro ser sacrificado.

Para além disso, deveria haver um sistema organizado de aconselhamento da grávida no serviço público

O doutor Figueiredo Dias também observa que a punibilidade da IVG nas primeiras quatro semanas é algo meramente simbólico: manter a punibilidade naquele período é algo de concretização impossível, totalmente ineficaz, desnecessário do ponto de vista do bem jurídico e talvez inconstitucional (art. 18º/2).

É óbvio que a criminalização do aborto não está a resultar e que há um grande número de abortos clandestinos que, as mais das vezes, acabam com a morte da mulher. Assim, o direito penal não está a cumprir a sua função e a existência de pena não está a servir como prevenção especial de socialização nem como prevenção geral positiva. Desta forma, como a criminalização é inconsequente, ela deveria deixar de vigorar nos termos actuais e o Estado deveria encontrar outras formas para evitar o recurso à IVG.

Como conclusão, creio que devemos deixar a questão do aborto para quem deve decidir: a mulher e, se existir, o pai. O Estado não tem legitimidade para obrigar uma mulher a dar à luz contra a sua vontade, independentemente das circunstâncias em que houve concepção e de todas as excepções consagradas no Código Penal.

23 de Outubro, 2005 Palmira Silva

Mais dilemas para os católicos

Mais dilemas morais, impossíveis de resolver através do sofismático «duplo efeito», esperam os católicos devotos. De facto a FDA, o organismo regulador dos medicamentos e práticas médicas nos Estados Unidos, aprovou na quinta-feira o primeiro transplante de células estaminais fetais em cérebros humanos, uma técnica que a conhecer sucesso permitirá num futuro próximo o tratamento de muitas doenças neuronais, genéticas e degenerativas.

Os pacientes a serem transplantados são crianças que sofrem de uma doença genética rara e fatal, denominada doença de Batten, que torna as infortunadas vítimas cegas, sem fala e paralisadas antes de as matar, na sua variante mais comum antes da pré-adolescência.

Os médicos do Centro Médico da Universidade de Stanford, Califórnia, implantarão os cérebros das de outra forma condenadas crianças com células estaminais neuronais, imaturas e saudáveis, retiradas de fetos abortados. Os médicos esperam que estas células estaminais prossigam o seu desenvolvimento nos cérebros hospedeiros produzindo o enzima impossível de transcrever (fabricar) dos genes defeituosos. Enzima que é necessário para processar o «lixo» produzido pelas células cerebrais, que sem tratamento se acumula e vai matando os neurónios da criança, diminuindo-lhe as funções biológicas até à morte. Não há qualquer outro tipo de tratamento para esta doença!

Fico na dúvida se o novo Papa, que já declarou que uma das prioridades do seu papado será exactamente a bioética, que prepara um novo documento sobre o tema, que debitou uma profusão de documentos, entrevistas e declarações sobre o assunto, irá instruir os fiéis da Igreja de Roma para deixarem morrer os seus filhos e não os sujeitarem a esta pecaminosa e imoral interferência no desígnio divino.

Aliás, existe um documento oficial do Vaticano dizendo explicita e inequivocamente que quaisquer tratamentos baseados em células estaminais embrionárias são absolutamente ilícitos. Parecer-me-ia complicado aos teólogos do Vaticano produzir um sofisma que os torne lícitos no caso de células estaminais fetais!

Mas aparentemente só em relação às mulheres «Não é lícito, mesmo pelas razões mais graves, fazer o mal para que se siga o bem, isto é, fazer ao objecto de um acto positivo da vontade algo que é intrinsecamente imoral, e como tal indigno da pessoa humana, mesmo quando a intenção é a salvaguarda ou promoção do bem estar individual, familiar ou social». E talvez como no caso das vacinas preparadas a partir de fetos abortados, o Vaticano consiga produzir um documento tortuoso permitindo práticas «imorais». De facto, embora ordenando os católicos a lutarem contra as companhias que produzem imoralmente tais vacinas, especialmente a vacina contra a rubéola para que não há alternativas «morais», o Vaticano permite a vacinação «imoral» de crianças católicas através de outro sofisma rebuscado.

Sofisma que afirma que a obrigação moral de evitar colaboração material passiva com um «crime»(ser vacinado com uma vacina ilícita) não é obrigatória se existir um inconveniente grave. Acrescentando que este é um caso de razão proporcional, uma extrema ratio, justificável num contexto de «coerção moral da consciência dos pais que são forçados a agir contra a sua consciência ou então pôr em risco a saúde dos seus filhos e de toda a população. Esta é uma escolha alternativa injusta, que deve ser eliminada tão cedo quanto possível».

Os desenvolvimentos científicos verificados no século passado tornaram impossíveis de aceitar pelos crentes posições como a do Papa Leão XII que durante uma epidemia de varíola em 1829, decretou que «aquele que permitir ser vacinado deixa de ser um filho de Deus» já que «A varíola é um julgamento de Deus e a vacinação é um desafio ao Céu» argumentando que a vacinação era uma interferência inadmissível na vontade divina.