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Dia: 16 de Outubro, 2005

16 de Outubro, 2005 Palmira Silva

IVG II: as raízes

Para conseguirmos entender a concepção do dogma cristão em relação ao aborto é necessário abordar as raízes do cristianismo que são simultaneamente as raízes da demonização do sexo e da demonização e menorização da mulher. Embora frequente e inconvincentemente negada, a misoginia explícita na Bíblia foi a fonte onde os chamados pais fundadores do cristianismo beberam a misoginia que ainda hoje caracteriza as religiões cristãs em geral e a católica em particular. Misoginia expressa, por exemplo, no mito da «imaculada concepção». A »virgem» Maria foi elevada a paradigma da mulher cristã, uma mulher que nasceu «liberta do pecado original» e concebeu um filho «por graça do Espírito Santo», isto é sem o abominado sexo, façanhas que mais nenhuma mulher na História conseguiu igualar. Ou seja, o culto mariano apenas reforça quão indigna é a mulher que não consegue cumprir a sua função reprodutora sem o pecaminosos desejo sexual!

Quando o cristinanismo se tornou a religião dominante no Império Romano pela mão de Constantino, a posição e papel social da mulher, até aí muito «equalitários», quiçá também por infuência etrusca, conheceram uma crescente deterioração, tendência que só começou a ser invertida no século XIX quando o poder das Igrejas, especialmente a de Roma, começou a declinar.

Como indicado pela teóloga católica alemã Uta Ranke-Heinemann1 o ódio às mulheres é a caracteristíca comum de todos os principais teólogos cristãos dos primeiros séculos do cristianismo. Especificando com os mais reconhecidos teólogos (e santinhos) desta época, a patrística. Clemente de Alexandria (~150-215), o pai grego da Igreja, devotava um tal desprezo pelas mulheres que afirmou no seu livro Paedagogus que «a consciência da sua própria natureza deve evocar sentimentos de vergonha» às mulheres. Tertuliano (~160-225), o pai africano, chamava às mulheres «a porta do Diabo», Orígenes (~185-254), o patriarca de Alexandria, tinha tal ódio às mulheres e ao sexo que se castrou de forma a atingir «perfeição cristã».

Igualmente condenatórios da mulher e do sexo (uma consequência da Queda promovida pela pérfida Eva e cuja culpa é carregada para sempre por todas as mulheres) encontramos os grandes defensores da virgindade, a grande virtude cristã, Gregório de Nazianzum (329-389), bispo de Constantinopla, outro «santinho» Gregório (~330-395), bispo de Nyassa, Ambrósio (~339-397), bispo de Milão, Jerónimo (~342-420)(que traduziu a Bíblia para latim) e o patriarca de Constantinopla, João Crisóstomo (340-407).

Mas o expoente máximo da misoginia e ódio ao sexo cristãos é Agostinho de Hipona. Agostinho achava a mulher tão claramente inferior ao homem que achou necessário fazer a pergunta «Por que razão a mulher foi sequer criada?». A fobia da mulher e do sexo que se encontra em Agostinho, apenas entendida como uma aberração particularmente grotesca, infelizmente consolidou-se de pedra e cal no cristianismo pela pena fácil e erudita de Agostinho.

Hoje em dia a misoginia da Igreja manifesta-se na oposição a qualquer forma de controle da fertilidade feminina, nomeadamente à IVG e contracepção, como claramente indicado no documento de repúdio à Plataforma de Acção produzida na IV Conferência Mundial sobre a Mulher. Que expressa a condenação católica a qualquer forma de reconhecimento legal do aborto, assim como da contracepção ou do uso de preservativos, «tanto como medida de planeamento familiar, como em programas de prevenção da SIDA». Declara também a sua não aceitação de todo o capítulo IV, secção C, sobre saúde, «por dar atenção desproporcional à saúde sexual e reprodutiva». Manifesta ainda reservas quanto ao direito das mulheres a controlarem a sua sexualidade, «porque poderia entender-se como aprovação a relações sexuais fora do matrimónio heterossexual.»

A misoginia da Igreja manifesta-se também inequivocamente nas posições assumidas pelo finado João Paulo II, que como já tive oportunidade de escrever, tentou arduamente remeter a mulher para o papel tradicional consagrado pela Igreja de Roma e anular as conquistas duramente conseguidas de emancipação da mulher (que o Papa considerava perniciosa). O ideal feminino do finado Papa ficou bem estabelecido quando «Tomando a estas duas mulheres como modelos de perfeição cristã» beatificou Isabella Canori Mora, uma mulher que suportou estoicamente a violência de um marido abusivo, santificando assim a violência conjugal, e Gianna Beretta Molla (posteriormente canonizada com o título Mãe de Família), que preferiu morrer a interromper uma gravidez de alto risco. Isto é, o ideal de mulher para o Vaticano é assim uma mulher completamente subjugada ao marido e aos filhos, sem valor intrínseco fora de ambos e que deve renunciar à própria vida em favor de um qualquer óvulo fertilizado.

Assim, a condenação histriónica da IVG (e da contracepção) pela Igreja de Roma não tem nada a ver com uma pretensa «defesa intransigente da vida», que, como já tive oportunidade de abordar, não o é de facto, já que para a «santa» Igreja «a vida na sua condição terrena não é um valor absoluto». A oposição ao aborto baseia-se nas raízes do cristianismo que justificam igualmente a oposição à contracepção: misoginia e ódio ao sexo, que distrai e desvia os cristãos das «virtudes» cristãs. Aliás, a Igreja teve várias posições em relação ao aborto, que só passou a ser pecado em 1869, em pleno século XIX, pela pena do Papa Pio IX.

Curiosamente, em grande parte do mundo industrializado o aborto não era considerado um crime até que uma série de leis anti-aborto foram promulgadas na mesma época das declarações do pio Pio. Por essa altura, os proponentes da proibição do aborto realçavam os perigos clínicos do aborto. Também curiosamente a sacralidade do embrião e feto só é introduzida quando o argumento clínico deixou de ser válido…

[1]«Eunuchs for the Kingdom of Heaven: Women, Sexuality, and the Catholic Church» da teóloga católica alemã Uta Ranke-Heinemann, colega de Ratzinger nos tempos de estudantes de doutoramento (em teologia católica, claro) em Munique. Uta foi a primeira mulher a quem foi permitido um doutoramento em teologia católica.

16 de Outubro, 2005 Palmira Silva

IVG I: dogmas secularizados

Agora que as eleições autárquicas terminaram e os tabus presidenciais estão prestes a levantarem-se, podemos certamente esperar um recrudescer das hostilidades, quer na agenda política quer na mediática, em relação ao tema pseudo-polémico/fracturante da interrupção voluntária da gravidez, vulgo IVG ou aborto.

É um tema que eu considero pseudo-polémico porque o que na realidade está em causa é decidirmos se devemos permitir que a lei nacional, a seguir por todos independentemente da sua crença ou falta de crença religiosa, se sujeite aos dogmas da religião maioritária no país e consagrar como criminoso e punível com pena de prisão aquilo que é «pecaminoso» aos olhos da Igreja. Não há qualquer razão objectiva, biológica ou moral, para criminalizar a IVG. Há apenas um dogma católico explícito nos muitos vociferadores em nome de Deus com que somos frequentemente agraciados nos meios de comunicação e implícito naqueles que rejeitam motivação religiosa para a sua objecção ao livre arbítrio sobre o tema.

Na realidade, todos estamos sujeitos a «programação» religiosa via dogmas secularizados. O homem é o mamífero superior cujas crias nascem mais impreparadas para o mundo, numa fase em que o seu cérebro mal começou a desenvolver-se. Na realidade todos os nascimentos humanos, como qualquer estudante de biologia sabe, poderiam considerar-se abortos de fetos viáveis. Esse é quiçá o acaso da selecção natural que resultou no maior trunfo da Humanidade, aquele que distingue o ser do Homem do ser dos demais animais, já que a selecção natural privilegiou os exemplares capazes de dar à luz fetos viáveis sensivelmente a meio do tempo de gestação «normal», fetos com poucas conexões neuronais estabelecidas mas a cujo nascimento uma maior percentagem de gestantes sobreviviam. E é um trunfo que a evolução proporcionou porque o desenvolvimento cerebral extra-uterino é muito mais rico em estímulos o que permite uma «programação» francamente mais diversa e flexível que a possível uterinamente. E boa parte dessa programação é efectuada durante os primeiros anos de vida, como os tristemente célebres casos de crianças selvagens indicam claramente. Um dos casos mais bem documentados, o da menina-lobo Kamala encontrada com 5 anos, mostra quão importantes são os estímulos externos no desenvolvimento de um ser humano e quão difícil é a reprogramação humana.

Assim, se considerarmos a História nacional em que até há pouco mais de 30 anos o condicionamento social era estrita e institucionalmente católico não é de espantar que muitos dogmas religiosos se tenham secularizado. Nomeadamente o dogma em relação ao aborto. Mas já é tempo de a sociedade portuguesa reconhecer pelo nome um dogma religioso e progredir para um estágio em que a laicidade preconizada na Constituição e a liberdade religiosa sejam um facto e não uma ficção.

Exactamente o que quero dizer com dogma secularizado é melhor ilustrado com um exemplo de outra sociedade com a qual não partilhamos todos os dogmas. Quando vivi nos Estados Unidos um dos meus amigos era um israelita ateu que se encontrava em San Diego a fazer doutoramento em música na UCSD. Não obstante ser ateu, o Avi recusava-se a comer carne de porco ou a ingerir refeições na qual constassem carne e leite como ingredientes simultãneos. Claro que no nosso círculo de amigos tal facto era alvo de comentários de espanto aos quais o Avi retorquia que não havia nada de religioso na sua recusa em comer alguns pitéus, simplesmente era-lhe repugnante sequer pensar em ingerir semelhantes barbaridades gastronómicas. Como co-habitante de uma casa com dois biólogos sabia que não havia algo de «impuro» no denegrido suíno nem alguma justificação lógica ou biológica para as suas idiossincrasias alimentares. Mas simplesmente fora programado na sua (mui tenra) infância em Israel a abominar as ditas «delicatessen», programação que o seu ateísmo ainda não fora capaz de ultrapassar. O Avi estava (e suponho que continua) refém de um dogma secularizado!

De forma a podermos reconhecer como dogma religioso a motivação dos chamados pró-vida (que não o são de facto) é didáctico analisar não só as origens como as inconsistências do dogma. Porque normalmente fomos expostos a este dogma específico numa fase de programação mais tardia e como tal é racionalmente ultrapassável se reconhecido como tal!

16 de Outubro, 2005 Palmira Silva

Ovos da evolução

Um dos ossos de contenção dos criacionistas reside nos dinossauros, cujo nome significa «lagarto terrível» (do grego deinós, terrível) e assim denominados em 1841 pelo paleontólogo inglês Sir Richard Owen que os classificou como membros da família dos sáurios.

Hoje em dia a maioria dos cientistas acredita que alguns dinossauros são os antepassados das aves. Aliás embora reconhecidas muito mais tarde, as semelhanças entre aves e répteis tradicionais foram notadas por anatomistas desde muito cedo (século XVI) e entendidas à luz da evolução quando em 1860, pouco depois da publicação da «Origem das Espécies» de Darwin, foi encontrado por um trabalhador de uma pedreira alemã um fóssil de Archaeopteryx lithographica no calcário da formação Solnhofen (fim do Jurássico). Este fóssil, um exemplo de uma «forma transicional» entre dois grupos, répteis e pássaros, foi aceite durante muito tempo como o pássaro conhecido mais antigo, e é um elo importante entre pássaros e coelurosaurs (membros dos terópodes, um grupo que inclui o Tyrannosaurus Rex) e ajudou a construir a árvore da evolução ou filogenética do grupo.

Como nota de curiosidade o cientista Thomas Henry Huxley (um adepto tão militante da teoria da evolução que era conhecido como o Bulldog de Darwin), um dos que apontou as semelhanças entre as aves e os terópodes no século XIX, é o «pai» do termo agnóstico (para além de avô de Aldous Huxley, o autor do conhecido «Admirável Mundo Novo»).

O problema dos criacionistas puros e duros em relação aos dinossauros tem a ver com a linha de tempo que os fósseis destes estabelecem. Assim acredita-se que os dinossauros surgiram em meados do Triássico (cerca de 240 milhões de anos atrás) após uma extinção em massa, atravessaram o Jurássico e extinguiram-se (isto é, desapareceram os gigantes que popularizaram os dinossauros no léxico do nosso imaginário) no final do Cretáceo (há cerca de 65,5 milhões de anos). Para quem acredita que a Terra tem uns escassos 6 000 anos, os dinossauros são um osso demasiado grande para roer e as afirmações mais mirabolantes e cretinas são fabricadas por estes criacionistas para justificar a coexistência temporal do Homem e dos dinossauros e negar o suporte que os dinossauros e a sua história fóssil dão à teoria da evolução.

Os IDiotas, que admitem a microevolução ou evolução dentro de uma espécie, mas negam a macroevolução e que tentam, por todos os meios inclusive completamente desonestos, descartar todas as evidências científicas de macro-evolução, inclusive os fósseis transicionais entre espécies, especialmente os de dinossauros dado o fascínio que estes exercem na maioria de nós, têm agora mais um obstáculo na sua já impossível missão de venda do neo-criacionismo. De facto, há menos de um mês foram reportados os mais pequenos ovos de dinossauros encontrados que apresentam claramente uma mistura de características entre dinossauros e aves e que parecem provir de mais uma espécie transicional, uma espécie de pássaro-dinossauro minúsculo que viveu no ínicio do Cretáceo, há cerca de 100-145 milhões de anos, muito antes da já referida extinção dos dinossauros não alados no final do Cretáceo.