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Dia: 17 de Julho, 2005

17 de Julho, 2005 Palmira Silva

Creatio ex nihilo

«Desde há muito dizem que o Supremo Arquitecto tentou fazer escultura. (…) Assim este velho de barbas escolheu como material o barro, o que em si mesmo já mostra o tipo de mentalidade escultórica que possuía. As coisas começaram a correr para o torto; umas esculturas eram simplesmente más, outras começaram a estalar (…). Irascível e incapaz de autocrítica, Deus disse logo que a culpa não era dele. Em primeiro lugar acusou outro génio da época, um agrónomo especialista em pomares que, ao que parece, frequentava o jardim onde Ele punha as esculturas. Depois, acusou a má qualidade do barro e, finalmente, proibiu que se fizessem mais esculturas(…).» João Cutileiro, 1972.

Todas as religiões têm os seus mitos da criação, expressões de arquétipos comuns a toda a humanidade, já que uma das funções da religião é a de explicar o mundo e a existência humana, necessitando, por isso, mitos da criação, tanto do mundo como do homem. Assim, o mundo é frequentemente criado por um deus ou deuses a partir do caos, de uma matéria primordial, pensamento ou palavra divina – como na Bíblia e no Popol Vuh – e, nalgumas, uma emanação divina, como calor ou transpiração. Para a criação do homem, que se segue normalmente à criação do mundo, estes mitos envolvem, como seria de esperar, a intervenção «divina», seja ela a partir de um ovo, descendência de um casal divino, de barro, etc.. Todos esses mitos, porém, possuem características comuns: (1) o ser supremo é omnisciente e todo-poderoso; (2) o acto de criação é consciente, deliberado, planejado e livre e (3) a criação original é um paraíso destruído por um qualquer pecado humano.

Explicadas as origens é necessário elaborar sobre o futuro, com especial ênfase naquele que é o nosso destino último: a morte. Surgem então paraísos sortidos onde aqueles que em vida seguiram os meios de salvação debitados pelas autoridades religiosas respectivas vivem em eterna felicidade na Valhala adequada à sua cultura. Os incréus e os que não obedecem escrupulosamente aos ditames dessas autoridades são agraciados com infernos de concepção variada mas que são invariavelmente castigos «divinos» horríficos. Muitas religiões apresentam ainda versões apocalípticas para completar o ciclo.

Desde os primórdios da humanidade que os mitos criacionistas se constituiram como verdade absoluta, interpretada literalmente dos textos sagrados das diversas religiões. As vozes discordantes ou críticas foram por norma radical e violentamente silenciadas uma vez que as autoridades religiosas e políticas se confundiam no exercício do poder e o respeito pelo indivíduo não faz parte do código «genético» de alguma religião. No mundo ocidental a hegemonia das autoridades religiosas começou a ser questionada há pouco mais de dois séculos, na sequência dos movimentos humanistas renascentistas e culminou na laicidade e declaração dos direitos do homem, que inclui o direito à liberdade de pensamento. Mas quer a laicidade quer os direitos mais elementares são alvo contínuo de ataques dessas autoridades religiosas, nomeadamente da Igreja Católica, vulgo ICAR. A conjuntura actual é pasto fértil para que o Vaticano tente recuperar o integrismo perdido e, de facto, a eleição recente de Ratzinger para dirigente supremo e incontestável da ICAR é apenas mais um dos muitos sinais que o indicam.

Neste contexto, a ciência, completamente incompatível com quaisquer manifestações divinas, é o primeiro «inimigo» dos prosélitos da fé. Como o comprovam todas as movimentações em relação a investigação em terrenos perigosos para a ICAR (e outras religiões do livro, as naturais aliadas da primeira nas Nações Unidas nas tentativas de proibição da investigação sacrílega) como sejam a investigação em células estaminais, a clonagem, reprodução e morte assistidas. Assim, era apenas expectável que a teoria da evolução fosse repudiada pelo Vaticano. O dogmatismo anti-científico e obscurantista é necessário à sobrevivência do cristianismo e a reposição dos mitos da criação a pedra basilar da recuperação do integrismo católico.

Perante a ameaça civilizacional que tal regressão implicaria e dado que as tentativas de ensino do criacionismo, na sua vertente IDiota, o criacionismo advogado numa primeira fase pelo ilustre prelado Christoph Schönborn, arcebispo de Viena, não se restringem aos Estados Unidos e já houve delírios criacionistas na Europa, urge combater os dinossauros de Deus na sua missão totalitária. Como o temos feito no Diário Ateísta, informando os nossos leitores das manobras eclesiásticas nesse sentido, nomeadamente os repetidos assaltos à laicidade dos Estados, e dissecando os absurdos criacionistas que os exegetas do Vaticano querem impor como verdades absolutas e incontestáveis!