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Dia: 6 de Abril, 2005

6 de Abril, 2005 Ricardo Alves

A liberdade segundo JP2

Existe por aí quem pareça acreditar que JP2, o monarca absolutista do Vaticano, era um combatente da liberdade, talvez mesmo um libertário. Convém portanto não deixar cair no esquecimento as reflexões filosóficas de Karol Wojtyla sobre a liberdade, inseridas na Encíclica «Fides et ratio» («Fé e razão»). O Papa era, em boa verdade vos digo, um inimigo da liberdade tal como é entendida habitualmente. Comecemos por atentar no parágrafo 13 dessa Encíclica:
  • «É a fé que permite a cada um exprimir, do melhor modo, a sua própria liberdade. Por outras palavras, a liberdade não se realiza nas opções contra Deus. Na verdade, como poderia ser considerado um uso autêntico da liberdade, a recusa de se abrir àquilo que permite a realização de si mesmo? No acreditar é que a pessoa realiza o acto mais significativo da sua existência; de facto, nele a liberdade alcança a certeza da verdade e decide viver nela.»

Portanto, a «liberdade» na acepção doutrinal católica consiste em seguir um caminho único, o de uma «verdade» auto-proclamada, a fé, e na ausência desta a liberdade não se realiza. Ou seja, segundo a divagação papal, quem não é crente não é livre. E, pergunta o leitor, quem dá acesso a tal «verdade»? O parágrafo 2 esclarece:

  • «[A ICAR] recebeu (…) o dom da verdade última sobre a vida do homem».

Submete-se, deste modo, a liberdade de consciência à autoridade eclesial (católica, claro). E poder-se-á exercer a liberdade, recusando esta «verdade» e as suas consequências? O parágrafo 15 responde de forma categórica que a «verdade revelada» institui uma «obrigação»:

  • «A verdade da revelação cristã, (…) enquanto verdade suprema, ao mesmo tempo que respeita a autonomia da criatura e a sua liberdade, obriga-a a abrir-se à transcendência
A crença, para Karol, não era portanto livre e facultativa. Não é por acaso que no parágrafo 19 se clarifica que a liberdade é um «obstáculo» e, por isso, perniciosa:
  • «Se o homem, com a sua inteligência, não chega a reconhecer Deus como criador de tudo, isso fica-se a dever (…) sobretudo ao obstáculo interposto pela sua vontade livre e pelo seu pecado

A autonomia individual só pode, portanto, ser condenada sem ambiguidades (parágrafo 107):

  • «Iludindo-o [ao homem], vários sistemas filosóficos convenceram-no de que ele é senhor absoluto de si mesmo, que pode decidir autonomamente sobre o seu destino e o seu futuro, confiando apenas em si próprio e nas suas forças. Ora, esta nunca poderá ser a grandeza do homem

O indivíduo não pode portanto querer ser senhor do seu destino. Querer fazê-lo é «iludir-se» e afastar-se da «grandeza». Segue-se, inexoravelmente, a ideia de que quem não aceita isto não tem a mesma dignidade de quem o aceita, e de que só é verdadeiramente «homem» quem tem «fé», mas não uma fé qualquer (parágrafo 102)…

  • «o homem contemporâneo chegará a reconhecer que será tanto mais homem quanto mais se abrir a Cristo, acreditando no Evangelho».

E está tudo dito. Segundo Karol Wojtyla só se é livre se se for crente, essa crença é definida pela ICAR, implica que se abandone a liberdade individual aos ditames da ICAR, e quem não quiser nada disto é menos homem. Ou menos mulher, se considerarmos as consequências práticas mais gravosas, que não devem espantar ninguém que conheça o pensamento totalitário de Karol Wojtyla…

6 de Abril, 2005 André Esteves

Homopapa, o superpapa

Chega-nos da Colômbia a notícia de que, aproveitando todo o momento mediático, um artista de banda desenhada arrancou com a publicação de uma BD do papa.

Ilustrando a sua vida? – perguntará o leitor.

Não. O papa será um super-herói. Ressuscitado da morte para combater satanás. E como qualquer leitor de quadradinhos sabe, um super-herói, neste caso o «homem-papa», «Homopapa» ou «Homopater» não dispensa toda uma parafernália de equipamento com poderes especiais no combate do mal.
É a capa anti-satânica, o ceptro energético, são as calcinhas da castidade, os bolsos cheios de imagens menoritas, àgua benta e uma bíblia sagrada. Um bom super-herói não dispensa nenhuma ferramenta para um trabalho bem feito! Afinal, os seus arqui-inimigos muitas vezes nem usam calcinhas.

Segundo o autor, o homopapa irá ter crossovers (expressão do meio, que descreve histórias onde vários super-heróis se encontram) com o super-homem e o batman. Com os quais, o homo papa irá aprender a lutar contra o mal.

O autor, católico não praticante, nega qualquer oportunismo e declara-se um grande admirador de sua santidade, aprestando-se a dizer que esta é a sua maneira de o homenagear.

O que é que querem que eu diga?! O circo começa e o homem nem sequer está enterrado. De um lado temos os católicos de elite com voos místicos e apocalípticos, passando pela numerologia barata, do outro os católicos não praticantes cheios de esperteza saloia.

E ainda querem que não se ligue ao kitsch e aos fait divers? Como haviamos de nos rir de nós próprios e da humanidade? A realidade será sempre mais estranha que qualquer ficção…

P.S-> O autor será publicado pela DC Comics e já planeiam a distribuição no México e na Polónia, para além da Colômbia natal. Pelo andamento da carruagem ainda se publica em Portugal.

6 de Abril, 2005 Carlos Esperança

O circo das exéquias

A exibição do corpo de João Paulo II lembra os caçadores furtivos que antigamente mendigavam pelas portas mostrando como troféu o cadáver de um lobo, uma raposa ou um gato bravo. Os predadores exploravam o animal morto enquanto o cheiro do bicho e o óbolo dos curiosos o permitiam.

Esta semana o turismo fúnebre virou-se para Roma. De todo o mundo afluem multidões impelidas pela pressão mediática, num tropismo lúgubre de sabor necrófilo. Políticos e clérigos exibem-se em promíscua cumplicidade, por entre multidões de devotos, num espectáculo de mútua indignidade e recíproca subserviência.

A mórbida satisfação de verem um papa amortalhado é lenitivo bastante para suportar o cheiro nauseabundo das essências canónicas misturadas com os fluidos de corpos que se comprimem a reclamar um banho.

Uma semana é pouco tempo na vida de um corpo decrépito mas é uma eternidade para um cadáver em bom estado à espera de funeral. Não há incenso que disfarce, nem pituitária que resista. E um papa, depois de morto, não devia cheirar pior.

O Vaticano não tem maternidade, todo ele é um cemitério. A vida pouco conta naquele bairro, é um mero pretexto da retórica contra o aborto. A morte, essa sim, é a matéria prima de que se alimenta a fé, a angústia e o medo.

Os festejos fúnebres duram uma semana. Os abutres que velam o cadáver exultam com a morte e exaltam o sofrimento. A comunicação social amplia a vertigem mortuária e promove a orgia fúnebre a que não falta a adequada coreografia para comover os fiéis e dilatar a fé.

O espectáculo é obsceno. Recria-se o esplendor da contra-reforma servido por modernos meios de comunicação. Onde está o respeito por um cadáver que se exibe e explora? Mas que pode esperar-se do Estado totalitário que nunca assinou a Declaração dos Direitos Humanos do Conselho da Europa?