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Dia: 27 de Janeiro, 2005

27 de Janeiro, 2005 Palmira Silva

A religião e o holocausto: I

« The Government, being resolved to undertake the political and moral purification of our public life, is creating and securing the conditions necessary for a really profound revival of religious life (…) The national Government regards the two Christian confessions as the weightiest factors for the maintenance of our nationality. It will respect the agreements concluded between it and the federal States. Their rights are not to be infringed.(…) The Government of the Reich, which regards Christianity as the unshakable foundation of the morals and moral code of the nation, attaches the greatest value to friendly relations with the Holy See, and is endeavoring to develop them..»

– Adolf Hitler, discurso no Reichstag em 23 Março de 1933

Um post do Carlos criou veementes protestos, nomeadamente a acusação de mistura de alhos com bugalhos, ou seja, a mistura da religião católica com o horror do Holocausto. Na realidade acho que o post do Carlos nos recordou quão fácil é usar a religião para os mais ignóbeis fins. E é um alerta para que os eventos que tão tristemente relembramos hoje não se venham a repetir. A intolerância disfarçada com as roupagens da fé não deixa de ser intolerância mas é certamente mais «aceitável» para os crentes. Porque acima da razão e da crítica deve estar a obediência a Deus e aos seus representantes na Terra, os exegetas que interpretam à sua conveniência os textos ditos «sagrados».

As causas da II Guerra são, como é óbvio, complexas e diversas mas não devemos ignorar o papel desastroso que a religião teve nos acontecimentos que culminaram no Holocausto. O ódio de Hitler pelos judeus foi incutido pela sua religião, a visão exegética da religião católica dominante, e reforçado pela cultura germânica da época. A sua obsessão pela exterminação dos judeus, o «eixo do mal» para Hitler, era a sua forma de realizar o trabalho de Deus. Muitos altos dignitários das igrejas cristãs viam o trabalho de Hitler, não só na eliminação dos judeus mas também no combate ao comunismo soviético, como divinamente inspirado. Os nazis apresentavam-se como mais que um partido político, como um movimento que pretendia abranger todos os aspectos da vida quotidiana, em que a religião tinha um papel preponderante. O próprio Hitler usa a sua fé católica como inspiração para os seus inúmeros discursos, para o «Mein Kampf» de triste memória e como justificação para todo o mal que cometeu.

O Holocausto foi aceite sem grande contestação pelo povo alemão porque foi precedido por uma intoxicação da opinião pública contra os judeus por parte não só da propaganda nazi, como das igrejas protestantes, e por partidos católicos na Áustria e na Alemanha. Com o beneplácito da Igreja de Roma, como veremos no post seguinte.

A laicidade na Alemanha nunca foi sequer considerada antes da segunda guerra mundial. Por exemplo, os jovens que se formavam nas Escolas Militares alemãs do final do século XIX juravam obediência a Deus e ao Kaiser. Aliás é essa promiscuidade, a aliança entre a Igreja – Estado na Alemanha que inspira Nietzsche para o seu livro «O Anticristo». Mas um factor decisivo foi a celebração, em 1917, do quarto centenário das Teses de Martinho Lutero. O evento, infelizmente, tornou-se um veículo de idolatria de Lutero como um herói alemão, encarnando o espírito germânico. O anti-semitismo manifestado por Lutero foi assim facilmente utilizado na cooptação da Igreja Protestante como instrumento do Estado nazi.

Em 1920, o Partido dos Trabalhadores Alemães, precursor do Partido Nacional Socialista, adoptou um manifesto de 25 pontos, obviamente anti-semita, que limitava a liberdade religiosa, permitindo-a apenas na medida em que não ferisse os sentimentos raciais alemães, adoptando o que foi chamado de «Cristianismo Positivista».

Em 1928 surgia o movimento do Cristianismo Germânico, associado às Igrejas Protestantes da Alemanha, oficializado posteriormente em 1932. O líder do movimento era o Pastor Ludwig Muller, o chefe da Gestapo a partir de 1939, investido bispo da Igreja do Reich em 1933.

Em Julho de 1933, o Cristianismo Germânico ganhou as eleições nas igrejas protestantes com 70% dos votos e elaborou uma proposta de constituição para uma nova Igreja do Reich, muito desejada por Hitler, formada por todas as 28 igrejas regionais protestantes, reconhecida oficialmente pelo Reichstag em 14 de Julho. Da facção perdedora,o Evangelho e a Igreja, emergiram os religiosos que se opuseram a Hitler, que são agora usados como confirmação da oposição das Igrejas a Hitler, quando na realidade eram apenas uma honrosa minoria.

27 de Janeiro, 2005 fburnay

A Exegese

Se há coisa que mais me confunde no mundo teológico é a autoridade interpretativa do exegeta. Os textos sagrados ou são literais, como nos querem fazer crer alguns envangelistas norte-americanos (e o assunto fica por aí, sendo ainda mais fácil a exposição da obtusidade da prática religiosa ou da mensagem textual) ou são metafóricos, necessitando nesse caso de uma interpretação “profissional”. E esse profissionalismo só é garantido, mais do que àquele que compreende o texto original e domina o latim, o grego, o árabe, o aramaico o atlante e a História, a quem pertence à religião cujo texto pretende interpretar.

A subjectividade da interpretação hermenêutica é facilmente eclipsada pelo peso do dogmatismo. Não é difícil extrair um significado sagrado de um texto contraditório, obscuro ou metafórico. O difícil é perceber o porquê de tanta exegese, tradução e interpretação se os textos continuam contraditórios, obscuros e metafóricos. Daí que as sucessivas contradições da Bíblia, por exemplo, necessitem de uma lavagem cerebral intensiva (ou ausência de espírito crítico) para poderem caber dentro das cabeças que acreditam nela, sem causar incómodo. Quando o disparate espreita aos olhos de alguém atento de nada adianta a um “leigo” criticá-lo – se é uma contradição há que conhecer o contexto, se é um erro de tradução há que conhecer a língua original, se é uma metáfora ninguém lhe garante que a percebeu, se é obscuro Deus escreve direito por linhas tortas e, ó malfadada compreensão humana, há que lembrar que os textos foram escritos por homens, falíveis e confusos. Ad hoc. Ad infinitum.

Um texto que necessite de uma exaustiva descodificação é, antes de mais, um texto complicado. Um texto que só pode ser interpretado por um grupo de pessoas escolhidas tendenciosamente sem qualquer critério senão o de que vão dizer aquilo que se pretende, é um texto de acesso restrito e a sua interpretação algo viciada. É um texto feito suspeitosa e propositadamente inacessível. E não vejo nenhum outro propósito senão o de conservar a suspeitosa importância do clero.

Para mim é simples: se tivermos espírito crítico, não precisamos do Espírito Santo.

27 de Janeiro, 2005 Carlos Esperança

Desventuras de S. Victor

Havia muito que S. Victor ouvia as preces dos devotos e as deferia na medida das suas disponibilidades, de acordo com a modéstia dos mendicantes. Afeiçoaram-se os créus ao taumaturgo e este aos paroquianos que o fizeram patrono da maior paróquia da Arquidiocese de Braga.

Há tempos foi retirado do «Martirológio» – o rol da Igreja Católica que regista todos os santos e beatos reconhecidos ao longo de vinte séculos, desde que a ICAR se estabeleceu. O argumento é pouco convincente e deveras injusto. Não se retira do catálogo um santo por ser apenas uma lenda. Que o tenham feito a S. Guinefort, cão e mártir morto injustamente pelo dono, aceita-se porque a santidade não se estende aos quadrúpedes domésticos. Duas mulas, que os rudimentares conhecimentos de grego dos padres confundiram com duas piedosas mulheres, compreende-se que fossem apeadas dos altares, que não foram feitos para solípedes.

Mas um santo com provas dadas, clientela segura, devoção fiel, é uma maldade que não se faz aos pios fregueses, tementes a Deus e cumpridores dos Mandamentos. O padre Sérgio Torres afirmou ao «Correio do Minho» que os paroquianos «reagiram com desagrado e muita surpresa». Não lhe permitiu o múnus e a educação dizer que foi uma patifaria do Vaticano. O séc. IV, em que o jovem Victor foi condenado à morte por se recusar a participar numa cerimónia pagã, segundo a tradição agora desmentida, foi há tanto tempo! Que importa uma pequena mentira numa Religião que vive das grandes?

E agora? Que fazer? Arrancam-se os azulejos que documentam a mentira? Transfere-se a devoção para os santos fabricados por João Paulo II, alguns tão pouco recomendáveis e tão detestáveis, apenas com a sorte de terem dois milagres no currículo?

O presidente da Junta de Freguesia de São Victor, Firmino Marques, embora revelando «algum desconforto», justifica a retirada do orago do calendário litúrgico «somente pelos critérios científicos usados actualmente para a proclamação dos santos e beatos da Igreja Católica». Este autarca é um admirador confesso da ciência.