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Dia: 23 de Janeiro, 2005

23 de Janeiro, 2005 Carlos Esperança

Tolerância

Alguns leitores não terão reparado nesta advertência: «As opiniões expressas no Diário Ateísta são da exclusiva responsabilidade dos seus autores, e não representam necessariamente a generalidade dos ateus». Estranho seria a unanimidade de pontos de vista entre os onze colaboradores habituais, com percursos de vida distintos, variadas origens e diferentes marcas do passado.

O Diário Ateísta (DA) não pode, em nome da harmonia universal, defender a utilidade das religiões, a bondade dos seus valores ou a verdade dos seus livros. Quem começa por comover-se com o martírio de Deus acaba por acreditar nas mentiras da sua religião. Quem crê nos livros sagrados acaba por abdicar do livre-pensamento.

As religiões combatem o que julgam ser os nossos erros, nós combatemos o que pensamos serem as suas mentiras. Não vem daí mal ao mundo. O pluralismo é fonte de progresso e o caldo de cultura onde florescem as democracias. Não há mal em que haja crentes, o perigo reside nos que não se conformam com os crentes de outras religiões ou com os que desprezam Deus e a fauna celeste, se riem das profecias ou se alheiam dos castigos com que os padres assustam os fiéis.

Para lá das regras mínimas de urbanidade que é útil cultivar em sociedade, não devo condicionar a liberdade de expressão na denúncia dos erros, contradições e mentiras que exornam a bíblia. Dizer que o Deus de Abraão não merece crédito, que a sua crueldade indigna, que o seu pensamento se situa entre a indigência intelectual e a crueldade assassina, não revela radicalismo, denota civilização. Só há, aliás, uma desculpa para os bárbaros «ensinamentos» do Antigo Testamento – a crueldade do tempo em que o seu deus foi criado.

A tolerância não dimana da submissão à mentira, é apanágio de quem entende que o erro não exige castigo, a superstição não carece de cadeia e a oração não merece coimas. Há quem goste de ver gente de joelhos e prostrada no chão em subserviência beata. Desprezo esse deus e condoo-me com os seus crentes. Denuncio o despautério, antipatizo com a estética e sofro com as vítimas da fé.

O DA não se propõe divulgar orações, defender dogmas ou promover os mandamentos da Igreja; não reconhece valor terapêutico aos sacramentos nem acredita que a água benta seja melhor que a outra; tem fundadas dúvidas de que o pão e o vinho se tornem corpo e sangue de Jesus no momento da consagração na Missa; vê a confissão como uma arma política ao serviço do clero, a absolvição como placebo e a comunhão como ritual inútil e bizarro.

Mas há um aspecto em que os ateus são intransigentes: não se conformam com a violência dos livros sagrados e, muito menos, com os castigos que infligem aos infelizes que vivem em países onde as suas determinações são lei. Deus pode sentir um requinte sádico em mandar alguém para o inferno, em assistir à excisão de um clitóris, à lapidação de uma mulher, à amputação de membros, ao assassínio de sodomitas, à tortura de infiéis e a outras barbaridades, perante o ar bovino ou exultante dos seus fiéis.

Um ateu condena toda a crueldade inútil e tem a certeza de que vale mais a felicidade de um só homem do que o prazer de qualquer deus.

23 de Janeiro, 2005 lkrippahl

Ecumenismo Ateu.

Ultimamente a questão da tolerância tem levado a uma certa intolerância entre ateus, agnósticos e crentes. Infelizmente, temos mais tendência para ver diferenças que semelhanças, e projectamos nas pessoas as diferenças que vemos entre as suas ideias e as nossas. Acaba-se a atacar gente em vez de discutir assuntos…

E isso é especialmente trágico porque as diferenças acabam por ser pouco importantes. O Ateu e o Crente são opostos, evidentemente; um diz que não há deuses, o outro diz que há. Mas, se virmos bem as coisas, isso é uma questão de pouca importância. A nossa vida é muito mais que a questão da existência de deuses.

Para o ateu (nem todos almejamos a letra maiúscula, felizmente) o importante é que, não havendo deuses, não há dever nenhum de acreditar neles. Quem quer acredita no que quiser, quem não quiser não acredita. A maioria dos ateus não está preocupado com o que os outros acreditam ou deixam de acreditar.

Para o crente (que também tende a ser de letra pequena, pois a grande maioria acaba por ser crente para umas coisas mas descrente para outras, e ainda bem) o importante é a sua atitude pessoal de crença. Poucos são os fanáticos que acham merecedor de sofrimento eterno todo o que acreditar em qualquer coisa que saia da fé «oficial». Para o crente também é importante que cada um seja livre de crer, ou de não o querer.

Preocupa-me que crentes, agnósticos, e ateus se agridam com a questão metafísica e pouco relevante da existência de deuses, quando no fundo quase todos concordam com o que é importante: não se deve impor crenças. Isso é que interessa!

Não interessa se um acredita e outro não. O que interessa é que crianças órfãs não se tenham que sujeitar à religião que a instituição em que calham lhes queira impor; que sacerdotes duma ou outra religião não possam abusar da confiança e poder que a sua posição lhes dá; que as organizações religiosas se sujeitem à lei e respeitem a nossa Constituição e os direitos Humanos. Estas coisas interessam tanto a crentes como a ateus.

É certo que muitos crentes não se importam que a religião seja imposta, desde que seja a deles e não outra. Esse é talvez o maior obstáculo ao «ecumenismo» ateu: persuadir os crentes que todos ganhamos em encarar a crença ou descrença religiosa como um direito individual e não como um dever sagrado. Mas não é a atacar pessoas, a ofender, ou a ameaçar as suas crenças que conseguimos uma sociedade mais tolerante.