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Dia: 9 de Janeiro, 2005

9 de Janeiro, 2005 Palmira Silva

A insustentável leveza do ser

«Logo no começo do Génesis, está escrito que Deus criou o homem para que ele reinasse sobre os pássaros, os peixes e o gado. É claro que o Génesis é obra do homem e não do cavalo. Ninguém pode ter a certeza absoluta que Deus realmente queria que o homem reinasse sobre todas as outras criaturas. O mais provável é que o homem tenha inventado Deus para santificar o seu poder sobre a vaca e o cavalo, poder esse que ele usurpara. Sim, porque, na verdade, o direito de matar um veado ou uma vaca é a única coisa que a humanidade, no seu conjunto, nunca contestou, mesmo durante as guerras mais sangrentas.

É um direito que só nos parece natural porque quem está no topo da hierarquia somos nós. Bastava que entrasse mais outro parceiro no jogo, por exemplo um visitante vindo de outro planeta cujo Deus tivesse dito «Tu reinarás sobre as criaturas de todas as outras estrelas», para que toda a evidência do Génesis ficasse logo posta em questão. Talvez depois de um marciano o ter atrelado a uma charrua ou enquanto estivesse a assar no espeto de um habitante da Via Láctea, o homem se lembrasse das costeletas de vitela que costumava comer e apresentasse (tarde de mais) as suas desculpas à vaca.

(…)

Descartes deu o passo decisivo: fez do homem «mestre e proprietário da Natureza». Que seja precisamente ele quem nega de maneira categórica que os animais tenham alma, eis aí uma enorme coincidência. O homem é senhor e proprietário, enquanto o animal, diz Descartes, não passa de um autómato, uma máquina animada, uma machina animata. Quando um animal geme, não é uma queixa, é apenas o ranger de um mecanismo que funciona mal. Quando a roda de uma charrete range, isso não quer dizer que a charrete sofra, mas apenas que ela não está lubrificada. Devemos interpretar da mesma maneira o gemido dos animais, e é inútil lamentar o destino de um cachorro que é dissecado vivo num laboratório.»

Milan Kundera in «A insustentável leveza do ser». Um livro que considero quasi obrigatório ler. Fala essencialmente do ser humano, da vida, do amor, das relações entre as pessoas, tornadas complexas pela sua simplicidade. Sobre o livro deixo a opinião de outro dos meus autores favoritos, Italo Calvino, em «Six Memos for the Next Millenium», «O peso da vida, para Kundera, está em qualquer forma de opressão. O romance mostra-nos como, na vida, tudo aquilo que escolhemos e apreciamos pela sua leveza acaba rapidamente revelando o seu verdadeiro, insustentável peso. Apenas, talvez, a vivacidade e a mobilidade da inteligência escapam à condenação – as qualidades de que se compõe o romance e que pertencem a um universo que não é mais aquele do viver».

O filme, dirigido por Philip Kaufman, com interpretações sublimes de Juliette Binoche, Daniel Day-Lewis e Lena Olin é fabuloso e recomenda-se mas não é possível ler o livro e continuar ileso. Se lido com a mesma simplicidade com que Kundera dialoga com a realidade…

9 de Janeiro, 2005 Carlos Esperança

Religiões e ditaduras

Conheci bem a conivência da Igreja católica com as ditaduras ibéricas. Ainda me recordo dos apelos feitos nas missas para que Deus protegesse os «nossos» governantes, lhes desse longa vida e iluminasse a inteligência, sendo certo que Deus foi sensível aos primeiros pedidos e completamente surdo ao último. De Salazar ouvi a vários padres que a Providência o tinha designado para governar Portugal. Creio que nasceu aí o meu desprezo por Deus e a desconfiança nos seus padres. Mas até o cardeal Cerejeira avisou Salazar desse desígnio providencial, de que teria conhecimento pelas confidências da senhora de Fátima à Irmã Lúcia. E escreveu-o com o mesmo despudor com que João Paulo II confirmou ao mundo que a beata Alexandrina de Balazar passou mais de uma década sem comer, nem beber, em anúria, a alimentar-se apenas de hóstias consagradas.

Em Espanha o caudilho era idolatrado pelo clero e muitas missas de acção de graças foram celebradas em sua honra, agradecendo ao Senhor a encomenda. Mons. Escrivá de Balaguer, já na altura bastante íntimo do divino, incensava o generalíssimo e combatia os seus adversários. Foi um apóstolo denodado do franquismo na região de Burgos, primeiro, e um pouco por toda a parte, depois. Como compensação levou para o túmulo o truque para fazer milagres e rapidamente chegar a santo.

Pio IX excomungava os que defendiam a separação entre a Igreja e o Estado. Pio XI declarou numa missa grandiosa em honra do «Duce», que ascendeu ao poder com o apoio activo da ICAR: «Moussolini é um homem que a Providência Divina nos enviou». Na sequência do atentado falhado de que foi alvo pelo jovem Anteo Zamboni, militante da Liga ateísta, com 15 anos de idade, este foi preso no local e linchado por fascistas. O Vaticano fez difundir nas igrejas e escolas uma imagem piedosa mostrando a morte do jovem Zamboni, «joguete do Diabo, inimigo da fé, punido pela mão de Deus».

A simpatia de Deus pelos ditadores comprometeu-lhe o prestígio e afastou-lhe a clientela quando as democracias se popularizaram. Exceptuando o comunismo em que Staline (um ex-seminarista que quase chegou a padre) se entregou a uma demência sanguinária, as ditaduras tiveram quase sempre o apoio militante e entusiástico do clero, da Europa à América latina, com grande destaque para a ICAR. Pinochet ainda hoje é um devoto da missa e desenvolveu pela eucaristia uma síndroma de habituação e dependência. Nos países árabes, onde o livro sagrado é de cumprimento obrigatório, sabe-se como a tolerância e a liberdade ofendem Alá, irritam o seu profeta e obrigam o clero a proceder em conformidade.

Penso, no entanto, que é menos a fé do que a volúpia do poder que atira o clero para relações promíscuas com o Estado. A sedução por regimes autoritários é o corolário lógico da verdade única, do ser supremo, do respeito pela hierarquia, da obediência cega. A submissão e a obediência são apresentadas como virtudes e estimuladas pelos guardiões da fé. Quando o poder vem de Deus instala-se o poder discricionário e a violência institucionaliza-se. Quando o sufrágio universal e secreto se conquista, Deus reduz-se à sua insignificância e os homens tornam-se livres.