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Dia: 3 de Janeiro, 2005

3 de Janeiro, 2005 fburnay

Ética ateísta

Conhece, quem é obrigado ao silêncio, o poder de quem cala. Pior é que dizer mentiras não deixar alguém falar. Pior ainda é advogar o direito ao abuso para combater o abuso do direito. E aquele que pensar que nada há de mais abjecto do que obrigar os outros a ficar calados porque o nosso discurso ofende mesmo sem ser insulto, desengane-se: pior que tudo isto é castrar o valor da nossa opinião porque aquilo que ofende não se prende apenas naquilo que dizemos mas naquilo que pensamos. Não estou a falar de sociedades teocráticas, não estou a falar de cruzados, não estou a falar de ditaduras nem de déspotas sem escrúpulos. Estou a falar de pessoas comuns. Porque, ateus ou não, podemos ser todos Galileus.

O meu direito a ser ateu é e sempre foi garantido entre aqueles que conheço. Já as razões pelas quais eu sou ateu, essas, são por vezes obrigadas a ficar escondidas dos ouvidos de muitos porque são intoleráveis. O facto de eu achar que os outros, e não eu, estão enganados, não é para eles uma opinião que importa debater para perceber quem é que está errado – é arrogância que não merece ser ouvida. Aquilo a que chamamos verdade, quer a conheçamos, quer não, chega a ser para alguns uma questão de perspectiva! E, sendo para essas pessoas uma questão de perspectiva, eu estou tão errado para os outros como os outros o estão para mim, de facto. É deste tipo de pessoas que os tiranos gostam.

Que haja instituições – não interessa quais – que façam o que eu descrevi, não me causa espanto. Mas ver falar aqueles de quem gosto, sem que se apercebam, a língua dos obtusos e dos violadores de direitos humanos é simplesmente assustador. E o hediondo disto tudo é que há quem não faça a menor ideia das implicações daquilo que diz. Pode parecer exagerado mas de facto todas essas coisas, que quando explícitas causam revolta, estão também presentes na ingenuidade do cidadão comum: do polícia ao juíz, do condutor ao peão, do aluno ao professor, da criança ao adulto. É a ingenuidade que boicota a cidadania, que distorce a justiça, que se arroga ao direito de calar quem acha que deve, que relativiza o absoluto e que absolutiza o relativo, que dita o que é bom ou mau, tudo isto na maior das plenitudes de espírito e paz interior. Ela está nas cabeças dos crentes que seguem os seus líderes sem os questionar, está na boca daqueles que se manifestam nas câmaras da Assembleia da República, está nas manchetes distorcidas dos jornais, está nas aulas de professores despreocupados, está na condescendência dos intelectuais, está no “simples” acto de quem bebe e conduz!

É por isso que acho que o Ateísmo possui uma componente ética. Porque sei que, apesar da natureza humana poder ser tudo menos aquilo que eventualmente desejaríamos, se pode procurar o fulcro que torna humana a sociedade. Podemos, todos juntos, construir uma sociedade melhor. Isso é aquilo que todos queremos, não é relativo. A noção daquilo que faz da sociedade melhor, isso sim, importa debater e nunca impôr. Isto tem tudo a ver com Ateísmo. Ateísmo não de ser simplesmente ateu mas de ser ateísta, que é o que eu sou. O Ateísmo que, na sua posição descrente e laica garante um lugar para todos aqueles que amam o seu deus. Um Ateísmo que defende valores de cidadania não pode ser uma ideologia sem valores. Aqueles que acusam o Ateísmo de defender ideais que, na sua elaboração, têm a mesma estrutura que os valores dogmáticos das religiões, estão enganados. O Ateísmo, na sua elaboração ideológica, admite sempre o seu próprio questionamento e nunca impõe dogma nenhum. Não admira que por isso seja tão consonante com a Ciência, com a Democracia e com a Cidadania em particular. Não é de estranhar que surja mais naturalmente no seio de comunidades críticas, dialogantes e sem complexos. Da diferença entre desejo e fé, entre esperança ingénua e convicção crítica é que nasce o báculo da Democracia – não de ouro na mão de um mas por direito, na mão de todos.

3 de Janeiro, 2005 Carlos Esperança

No Sri Lanka só a fé ficou incólume

Há catástrofes cuja dimensão semeia a desolação e o pânico. A dor extrema conduz à inacção ou ao desespero. Não há meio termo. A revolta, a angústia e o medo espalham-se no ar que cheira a morte e transporta pesadelos sombrios.

A televisão mostra-nos milhares de cadáveres juncando o chão, mortos que urge remover depressa para evitar que as epidemias lhes juntem outros. A morte, na sua obscena dimensão, deixa de interessar. São os vivos, espoliados de tudo, sem família, sem abrigo, sem água potável, sem alimentos, sem presente nem futuro, corpos desnudados, fantasmas vagueando sem destino, a respirar o ar que cheira a morte, são esses vivos a quem a tragédia bateu à porta que esperam solidariedade e a rapidez do nosso apoio.

As praias do Índico, que há dias regurgitavam de vida num ambiente idílico, são hoje cemitérios que rodeiam um continente mais pobre, desesperado e lúgubre. Mas sempre que o cheiro dos cadáveres se adensa logo as aves de repina se aproximam.

No Sri-Lanka, onde a agitação da terra e a fúria do mar se conjugaram para arrasar um país e dizimar a população, estátuas de Buda, de cimento e gesso, sobraram intactas, quando, à sua volta, tudo ficou destruído. Até um templo resistiu ileso.

Tanto bastou para que a tragédia fosse confiscada em benefício da religião. «As pessoas não vivem de acordo com as virtudes religiosas. Por isso, a natureza dá-lhes alguns castigos porque não seguem o caminho de Buda. As pessoas têm de aprender a lição», diz Sumana, um monge budista. – lê-se no «Público» de hoje. Não foi apenas o templo e alguns budas que resistiram ilesos – a crueldade, a ignorância e a chantagem reforçaram os alicerces.

No Sri-Lanka, como no resto do mundo, os abutres estão sedentos de carne putrefacta. A morte é o alimento predilecto das religiões e o medo o argumento para a conversão e submissão ao poder do clero. Perante a sinistra interpretação eclesiástica só a erradicação do fantasma de Deus pode fazer algo pela libertação da humanidade.

Apostila – Uma menina inglesa, de dez anos, com os conhecimentos científicos adquiridos na aula de geografia, apercebeu-se da iminência da catástrofe e conseguiu que uma centena de pessoas fugisse da praia. Salvou mais gente a sabedoria de uma criança do que a fé de todos os adultos.