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Dia: 6 de Dezembro, 2004

6 de Dezembro, 2004 Mariana de Oliveira

A Este nada de novo

Segunda-feira, o papa, uma vez mais, disse que a Europa deve encontrar «os modos e os caminhos para construir a paz num clima de frutuosa colaboração, no respeito pelas culturas e os legítimos direitos de todos», desde que não sejam as culturas e os direitos dos heréticos secularistas.

JPII relevou a herança que cada um dos Estados-membros traz e lembrou que o Vaticano «não cessa de defender o direito dos povos a apresentar-se no cenário da história com as suas próprias particularidades, no respeito das legítimas liberdades de cada um». Esse património particular, «claramente marcado pela herança cristã», serviu de pretexto para que o chefe da ICAR reiterasse que aquela instituição «não está nem pode estar à margem da construção europeia». «No actual debate cultural e social, emerge a necessidade de sublinhar as raízes cristãs, das quais o tecido popular tira a linfa vital desde há séculos», afirmou.

João Paulo II aproveitou também para mandar um recado para os políticos europeus: que respeitem o «nobre património de ideais humanos e evangélicos» e que todos se comprometam «na construção de uma sociedade livre, com sólidos fundamentos éticos e morais», desde que esses fundamentos sejam cristãos e, particularmente, católicos.

Não esquecendo os seus fiéis seguidores, enviou também o apelo a «colaborarem com todas as pessoas de boa vontade» – apenas os ICARianos – na luta contra modelos de vida «secularistas e hedonistas».

Portanto, a mensagem do Vaticano, quanto a uma União Europeia pluralista assente nos valores da Liberdade, Igualdade e Fraternidade, continua a mesma: é tudo muito bonito desde que a ICAR mantenha as rédeas que comandam a sociedade, toda a sociedade.

6 de Dezembro, 2004 Carlos Esperança

Um cheirinho a antigamente

O diário «A Capital» (site indisponível) traz uma reportagem sobre a Igreja de São Nicolau, na Baixa Pombalina, que reabriu ontem ao público, completamente remodelada e «com cheiro a novo». Apesar de reincidir nos mesmos produtos – a missa e a eucaristia – todos devemos estar gratos pela preservação do património nacional.

A notícia esclarece que o presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Carmona Rodrigues, foi convidado para assistir à Celebração Eucarística presidida pelo experiente patriarca Policarpo, convite que aceitou, como o comprova a foto onde aparece acompanhado de vários membros do Governo entre os quais o ainda primeiro-ministro Santana Lopes, incapaz de faltar a uma festa.

As obras estavam orçadas em 418.377, 17 euros mas não se sabe o custo efectivo. A ICAR é mais rápida a divulgar milagres do que a prestar contas.

Para se avaliar a inflação, comparem-se os preços actuais com os que se praticavam em meados do séc. XIX, por muito pouco credível que seja o documento que, a seguir, se transcreve e não passe de uma bem conseguida piada:

Cópia da Factura que um de mestre de obras apresentou em 1853

pela reparação que fez na capela do Bom Jesus de Braga.

Por corrigir os 10 mandamentos, embelezar o Sumo

Sacerdote e mudar-lhe as fitas ...................... 170 reis

1 galo novo para S. Pedro e pintar-lhe a crista ..... 95 »

Dourar e pôr penas novas na asa esquerda do Anjo da

Guarda .............................................. 90 »

Lavar o criado do Sumo Sacerdote e pintar-lhe as

suissas ............................................. 160 »

Tirar as nódoas ao filho de Tobias .................. 95 »

Uns brincos novos para a filha de Abraão ............ 245 »

Avivar as chamas do inferno, pôr um rabo ao Diabo e

fazer vários concertos aos condenados ............... 245 »

Fazer um menino ao colo de Nossa Senhora ............ 210 »

Renovar o Céu, arranjar as estrelas e lavar a lua ... 130 »

Compôr o fato e a cabeleira de Herodes .............. 55 »

Retocar o Purgatório e pôr-lhe almas novas .......... 355 »

Meter uma pedra na funda de David, engrossar a

cabeleira ao Saúl e alargar as pernas ao Tobias ..... 95 »

Adornar a Arca de Noé, compôr a barriga ao Filho

Pródigo e limpar a orelha esquerda de S. Tinoco ..... 135 »

Pregar uma estrela que caiu ao pé do côro ........... 25 »

Umas botas novas para S. miguel e limpar-lhe a

espada .............................................. 255 »

Limpar as unhas e pôr os cornos ao Diabo ............ 185 »

TOTAL ---------- 2.545 reis

6 de Dezembro, 2004 Ricardo Alves

Outro milagre da ciência

A excisão do clitóris é uma prática hedionda, legitimada por determinadas culturas islâmicas africanas. Apenas uma indiferença de origem racista explica que os poderes públicos tolerem a realização desta e doutras mutilações genitais em bairros degradados às portas de Lisboa. A ideia de que os pais não são proprietários dos filhos, e de que portanto não podem retalhar os órgãos sexuais dos filhos a seu bel-prazer, ou ainda não se generalizou, ou detém-se numa (imaginária) «fronteira étnica».

Felizmente, estão em desenvolvimento técnicas médicas que permitem a recuperação do clitóris (ver notícia na «Pública» de Domingo). Como é sabido, grande parte do clitóris encontra-se escondido debaixo da pele, e a excisão geralmente afecta apenas a parte visível. A operação de «reparação» consiste em «puxar para cima» parte do clitóris. Três em cada quatro mulheres declaram que recuperam a sensibilidade.

Para quem duvidasse, esta é mais uma prova de que os únicos «milagres» são científicos, e de que até alguns crimes de fundamentalistas islâmicos podem ser reparados. Parabéns, portanto, ao médico francês Pierre Foldès, que não por acaso tem recebido ameaças de morte vindas de fanáticos religiosos.

6 de Dezembro, 2004 Carlos Esperança

Sim à eutanásia

A morte é, como diz José Saramago, uma injustiça, inevitável, todavia, quando se cumpre o ciclo biológico ou acidentalmente se interrompe. Não raro, o fim é acompanhado por sofrimento indizível, pela degradação que ultrapassa todos os limites, por um desejo irreprimível de abreviar a angústia, a dor e a agonia. E sem a mais remota hipótese de se tornar reversível. É nestas circunstâncias que a morte por compaixão, a morte doce, precisa de um quadro legal que, evitando o crime, proteja a vontade reiterada do paciente.

É aqui que, mais uma vez, as Igrejas querem impor normas de conduta universais que apenas deviam obrigar os crentes. E, como de costume, com a mesma desonestidade intelectual com que a ICAR encara o aborto, a hipocrisia é o seu forte.

Claro que se desligam as máquinas nos hospitais, claro que a figura do «abafador», referida por Miguel Torga, é ancestral, claro que há sempre um médico sensato que ordena que cessem as manobras de reanimação, claro que há um momento em que o próprio e os que mais o amam pedem a morte que liberte, recusam os artifícios que prolongam o sofrimento. Mas a ICAR finge ignorância.

Há já vários países que encararam o problema e produziram legislação equilibrada. A Suíça é um deles, onde na última quarta-feira uma britânica com uma doença incurável morreu com ajuda médica em Zurique, depois de ter travado uma batalha legal em Inglaterra para se deslocar à Suíça, onde a lei permite a eutanásia.

É urgente que Portugal produza legislação que permita a morte com dignidade quando toda a esperança se apagou e o próprio recusa a vida.