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Dia: 2 de Dezembro, 2004

2 de Dezembro, 2004 Mariana de Oliveira

Regresso ao passado

Cristãos, muçulmanos e judeus juntaram-se em Doha, no Qatar, na defesa da «família tradicional» e aprovaram um documento, a «Declaração de Doha», onde se sublinha que «a família é a célula natural e essencial da sociedade», exortando que os governantes «promulguem e apliquem políticas que reforcem a estabilidade do casamento». Não se sabe é qual é o conceito exacto de família tradicional. Será aquela em que a mulher passa do jugo do pai para o do marido? Em que a mulher está confinada às lides da casa? Em que a principal utilidade da mulher é ter filhos e servir de saco de pancada do marido? Em que os filhos estão submetidos à vontade do pai? Isso é que são valores tradicionais, nada dessas tretas de igualdade e de direitos.

A «Declaração de Doha» sublinha a importância de «atender às normas religiosas e morais que contribuem para a estabilidade cultural e o progresso social», progresso esse que não se tem notado nos últimos tempos e que tem andado disfarçado de retrocesso na defesa de direitos, liberdades e garantias.

O cardeal Alfonso López Trujillo, presidente do Conselho Pontifício para a Família e representante do Vaticano neste evento, e que proferiu uma conferência sobre «A complementaridade do homem e da mulher: aproveitar os talentos de mães e pais» (especialmente os talentos culinários e parideiros de mães), afirmou que a família é uma instituição anterior ao Estado, defendendo que «nenhum governo tem o direito de mudar a definição de família ou de matrimónio». Ou seja, os Estados soberanos, como na Idade Média, têm de se submenter a conceitos não-jurídicos de matrimónio fundados em concepções morais e religiosas que não servem a nenhum Estado que se quer de Direito.

Não se ficando por aí, Trujillo declarou que «em todas as culturas e religiões há uma verdade presente: a família está baseada no matrimónio, o único lugar válido e apropriado para o amor conjugal». Não recebem, assim, a bênção todas as relações para-familiares como as uniões de facto que, actualmente, os ordenamentos têm vindo a reconhecer como situações dignas de tutela jurídica.

Parece que o regresso a uma família tradicional implica o regresso da mulher a um papel subalterno de cozinheira e parideira, ao desaparecimento de uma noção contratualista de casamento , à proibição do divórcio e à restauração de costumes tão interessantes como a poligamia e a lapidação feminina.

2 de Dezembro, 2004 Palmira Silva

Ainda o princípio antrópico, II: a posição «cientificamente correcta»

«Na sua versão «forte» o Princípio Antrópico diz o seguinte: O Universo é tal que:

1) Necessariamente leva ao aparecimento da Vida e da Vida inteligente;

2) Uma vez surgida a Vida inteligente, esta prosseguirá a sua evolução sem nunca desaparecer.

Dito de outra maneira: a Vida inteligente é como que um feto do Universo (implantado talvez por Deus) que se irá desenvolvendo de forma harmoniosa… E não há aborto, voluntário ou não, possível.

À primeira vista, esta tese não parece muito convincente. De facto sabemos que muitas espécies têm desaparecido (os dinossauros constituindo o caso mais espectacular). Os humanos, esses estariam condenados a não desaparecer…

Por um lado, se a Humanidade – a nossa Humanidadezinha – continuar com os pés na Terra, certamente que desaparecerá. Isto porque o Sol, fonte de vida, da energia e da nega-Entropia, é, como todas as estrelas, uma estrela condenada. Condenada a gastar o seu (abençoado) combustível nuclear até à exaustão.

Por outro lado, a Humanidade construiu armas poderosas- bombas nucleares capazes de levar a uma autodestruição. Por que é que tal não aconteceu, em particular nos anos quentes da guerra fria? Será que Kennedy e Kruchov ou Reagan e Bresnev tinham uma protecção (divina) que travava os seus instintos destruidores?

Mais uma vez aparece a pescadinha a querer meter o rabo na boca. Será pelo facto de haver um princípio teleológico que a Humanidade existe, ou será exactamente o contrário: porque a Humanidade existe inventou-se um princípio teleológico?

Em conclusão: a posição «cientificamente correcta» – a posição cc – parece continuar a ser a de Monod e Weinberg: somos fruto do acaso e da necessidade, nada mais há para além disso.

Naturalmente que todos temos o direito – e talvez o dever -, como Einstein, de nos deslumbrarmos, encantarmos, comovermos com o milagre do Universo e da Vida.

Haverá mesmo, talvez, irredutibilidade das questões de Gauguin (donde viemos, onde estamos, para onde vamos) a um tratamento estritamente científico. A razão poderá ter a ver com a impossibilidade que temos de responder a questões mais globais que se colocam na teoria. A questão do Nós e o Cosmos poderá ser uma questão meta-científica no sentido do teorema de Gödel. Por palavras simples: não se pode explicar tudo. Não pode haver teoria explicativa completa!

Termino com uma citação de Max Planck, o Físico dos Quanta, do fim do século XIX e do começo do século XX:

«A Ciência não pode resolver o mistério final da Natureza. Isto porque, em última análise, nós próprios somos parte do mistério que tentamos resolver»

Eu penso que Gödel não teria dito melhor!»

2 de Dezembro, 2004 Palmira Silva

Ainda o princípio antrópico, I: pescadinha de rabo na boca

Há uns dias tive oportunidade de escrever aqui a minha opinião sobre o Circulus In Demonstrando ou verdade de La Palice que dá pelo nome princípio antrópico, apresentada como uma alternativa deísta ao evolucionismo «ateu». Uns dias depois, em conversa com o presidente do CENTRA, o Centro Multidisciplinar de Astrofísica do Instituto Superior Técnico, Jorge Dias de Deus, um paradigma nacional em divulgação científica, pedi-lhe uma contribuição para o Diário Ateísta sobre esse e outros temas.

O Jorge informou-me que já tinha dissertado sobre o assunto, nos longínquos finais do século XX, quando todos pensávamos que a religião não seria sequer um parâmetro equacionável na descrição do «ser» do Universo, quando o Jorge afirmava que «a Evolução é uma das noções que, após grandes reacções de fundamentalismos vários, mais fortemente se enraizou na tradição científica», muito menos teria a evolução catastrófica para o progresso da Humanidade a que o dealbar do século XXI assistiu.

Assim, enquanto todos esperamos futuras contribuições, deixou-me com uma palestra que apresentou em Julho de 1998, no âmbito de uma iniciativa de divulgação científica, os V Cursos Internacionais de Verão de Cascais.

Palestra que, por ser demasiado extensa para transcrição na íntegra, partilho parcialmente em duas partes com os leitores do Diário Ateísta.

«Há um princípio, Princípio Antrópico, que pretende demonstrar que o número de civilizações inteligentes é necessariamente maior ou igual a um e, para os defensores mais extremistas do princípio, o número é exactamente igual a um. Trata-se efectivamente de uma tentativa de recuperar um sentido para o Mundo, através de um princípio teleológico, correspondendo a uma actualização das ideias de Teilhard de Chardin.

O Princípio Antrópico, na sua versão «fraca» diz que:

1) as forças da Natureza Têm as intensidades e alcances que têm:

2) as massas, cargas e outras características das partículas têm os valores que têm;

3) o Universo tem a idade que tem, de modo a permitir a existência e evolução da Vida (com base no carbono).

Em relação ao Universo, já vimos que a sua idade (na ordem de 1010 anos) é compatível com a evolução (cerca de 109 anos para que se chegue, por Evolução, à Vida Inteligente). Se fosse mais velho haveria menos estrelas a funcionar (teriam já gasto o seu combustível nuclear) e a probabilidade de se encontrar um Sol e uma Terra baixaria enormemente. Se fosse muito mais novo não teria havido tempo para o aparecimento de um Sol e de uma Terra, e não teria havido tempo para a evolução.

Quanto às massas das partículas, se a massa do electrão fosse 200 vezes maior do que é (se fosse igual à massa do muão) o átomo seria 200 vezes mais pequeno e nós seríamos igualmente 200 vezes mais pequenos! De facto, a situação é mais dramática do que isso: com átomos 200 vezes mais pequenos os electrões (de carga negativa) ficam dentro do campo dos protões (de carga positiva) do núcleo, sendo por estes capturados com a produção de neutrões e neutrinos (de carga zero). Os núcleos acabariam por ser instáveis e, por exemplo, as estrelas ficariam neutras, incapazes de produzir luz, que é uma pré-condição essencial para a vida. Dito de outra maneira: não haveria Sol!

Mas haverá, sim ou não, algo de misterioso nestas – chamemos-lhe assim – coincidências? É difícil de dizer onde é que está a boca e onde é que está o rabo da pescadinha: mas realmente parece um problema de pescadinha de rabo na boca. Não viveremos, talvez, no «melhor dos Mundos», mas temos de viver num Mundo onde possamos viver. Ou então não viveríamos.

Portanto, o Princípio Antrópico, nesta versão fraca, só serve para chamar a atenção para a necessidade de consistência entre as características da Vida inteligente conhecida, e as características do Mundo exterior. Em certa medida, o Princípio é tautológico. Por outro lado, nesta versão, não é de modo algum inconsistente com a evolução e o darwinismo. Limita-se a dizer: se eu existo têm que existir pré-condições para a minha existência.»

(continua)