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Dia: 6 de Novembro, 2004

6 de Novembro, 2004 Palmira Silva

Génese do Fundamentalismo

«Primeiro eles vieram atrás dos comunistas e eu não disse nada porque não era comunista.
Depois vieram atrás dos judeus. E eu não disse nada porque não era judeu.
Depois vieram atrás dos sindicalistas. E eu não disse nada porque não era sindicalista.
Então vieram atrás de mim. E já não havia mais ninguém para falar por mim.
» Martin Niemöller, pastor protestante alemão em resposta à pergunta como foi possível o Holocausto.

Um epifenómeno de crises económico-sociais consiste na eclosão de movimentos (religiosos, políticos e, principalmente, misturas explosivas de ambos) que se caracterizam por um radicalismo intolerante, um integrismo de todos os aspectos do quotidiano da polis e a assunção do papel de protectores e detentores da VERDADE ABSOLUTA. Este fenómeno, na sua vertente explosiva, agudizou-se nos últimos anos por todo o globo, propiciado por factores políticos, económicos e culturais sortidos, que exponenciaram a adesão a movimentos religiosos em que os crentes, professando a aceitação da verdade revelada (re)interpretada por esses grupos, se amparam emocionalmente numa grande família de fiéis, satisfazendo o ancestral sentimento de pertença.

Estes movimentos, a que nos habituámos designar por fundamentalistas, podem ser encontrados na Cristandade ocidental (Protestante ou Católica), no Judaísmo, Budismo, Hinduísmo e, sobretudo, no Islão. O fenómeno do fundamentalismo religioso, em especial o terrorismo de inspiração religiosa, é assim um dos mais sérios problemas contemporâneos, afectando em menor ou maior grau todos os países, e colocando questões de difícil resolução à Comunidade Internacional.

Hoje alargada para além do seu significado original, a expressão «fundamentalismo» remonta ao princípio do século XX, mais concretamente a 1909, data em que foram redigidos os «Fundamentals» textos de natureza doutrinária elaborados por teólogos de confissões protestantes. Estas publicações pretendiam consagrar o património sagrado insusceptível de negociação, passando os seus apoiantes e seguidores a serem conhecidos por «Fundamentalists».

Os movimentos religiosos que se apoiaram nestes documentos passaram a defender a doutrina do literalismo bíblico. Ou seja, foi reforçado o facto de a Bíblia ter inspiração divina, e portanto, infalível em todas as questões, isto é, «a Bíblia nunca se engana». Por outro lado, estes movimentos protestantes norte-americanos assumiriam uma postura que viria a ser muito característica dos movimentos fundamentalistas, e que se prende com a sua natureza política. Os fundamentalistas caracterizam-se pela sua oposição a tudo o que possa, de alguma forma, colocar em causa a autenticidade e pureza dos valores religiosos e da subjacente filosofia de vida suposta «superiormente» determinada. Como tal, são visceralmente opostos ao laicismo.

A origem dos fundamentalismos em sentido lato pode ser encontrada no Wahabismo (ou salafismo, como foi exportada para o exterior esta vertente do islamismo), que advoga uma interpretação literal do Corão e dos preceitos islâmicos. Fundado por Mohammad ibn Abd al Wahhab em meados do século XVIII, cuja aliança com Mohammad ibn Saud, ofereceu aos Saud uma missão religiosa claramente definida na qual eles basearam (e baseiam) a sua autoridade política.

Mas os fundamentalismos com expressão nacional, que constituem hoje em dia uma das principais fontes de violação dos direitos e liberdades fundamentais já que assentam na transposição para o âmbito jurídico e político de dogmas religiosos, como a Sharia, não se esgotam nos vários fundamentalistas islâmicos. E nem sempre correspondem a ditaduras impostas. Podem ser sufragados como testemunhámos há uns anos na Argélia e é o cenário mais provável no Iraque actual… E esperemos ardentemente que o não tenha sido na nação que primeiro adoptou a laicidade!

Mesmo a laica Europa, nomeadamente os países em que a religião dominante é o suposto mais moderado catolicismo (do concílio Vaticano II) não estão imunes à ameaça do fundamentalismo religioso. Como demonstrou o episódio Rocco Buttiglione e reiteram os discursos, cada vez mais frequentes, de altos dignatários da Igreja de Roma que apontam a laicidade como fonte dos males da Europa e do Mundo.

Faleceu há uns dias o padre francês Louis Bouyer que, em 1968, previa o advento do integrismo católico como reacção ao «laicismo» provocado pelas reformas do Concílio Vaticano II, expresso no livro polémico: «A decomposição do catolicismo».

De facto, uma das faces do fundamentalismo católico é o Integrismo Católico, com principal mentor no Arcebispo Marcel Lefebvre. Na obra «Acuso o Concílio», Lefebvre expõe uma suposta conspiração que culminou na aprovação de um conjunto de reformas que ameaçam a Igreja Católica, reformas essas inspiradas em movimentos que a pretenderiam de facto destruir: o modernismo, a laicidade e o liberalismo.

Os sinais da negação do concílio Vaticano II são fáceis de ler. Em pormenores aparentemente tão irrelevantes como a quase consumada revogação da Novus Ordo Missae de Paulo VI iniciada pela Instrução da Congregação para o Culto divino Redemptionis Sacramentum que reafirma a encíclica «Ecclesia de eucharistia», na qual são condenados veementemente os intitulados «abusos litúrgicos».

Mas pormenores que se repetem na encíclica «Veritatis splendor» que condenou todas as orientações progressistas no campo da moral cristã. Ou na «Fides et ratio», que reafirma o valor do conhecimento místico intrínseco à fé. E no pedido do Papa João Paulo II aos seminários de Teologia para retomarem enfaticamente o estudo de Tomás de Aquino e, consequentemente, a defesa dos valores cristãos medievais. E finalmente na «Dominus Jesus», documento da Congregação para a Doutrina da fé que nega o ecumenismo e afirma a irredutibilidade do Cristianismo a apenas mais uma religião dentre as outras, a um pensamento de algum modo assimilável a outras mensagens religiosas.

Com expressão crescente em Portugal existem outras faces (menos explícitas) do fundamentalismo católico, a Opus Dei e o Movimento Comunhão e Libertação. E, como nos alerta um post de leitura indispensável do Pula Pulga, Os subterrâneos da escravidão, continuado n’Os Buttiglione de cá:

«A Comunhão e Libertação tem ramificações bem definidas no tecido social português. Lá, nos subterrâneos da escravidão, trabalha-se afincadamente. Cá, onde nos entretemos com os blogs, cremos que os subterrâneos da liberdade fazem parte de uma história longínqua do autor de Gabriela, Cravo e Canela. Podemos despertar tarde de mais.»

6 de Novembro, 2004 Carlos Esperança

O Presidente da República e a Bíblia

A Sociedade Bíblica de Portugal tem um marketing agressivo cuja legitimidade se não contesta. Tentar atrair patrocinadores e figuras de destaque para a promoção do seu único produto – a Bíblia – é um direito que lhe assiste.

Há, todavia, dois aspectos que me repugnam:

– que o projecto tivesse sido declarado como sendo «de superior interesse cultural» pelo ministério da Cultura embora, neste caso, fosse uma forma de ter ficado a saber que o actual Governo tinha um ministério com esse nome;

– a presença do Presidente da República, bem como dos presidentes da A. R. e do Tribunal Constitucional constituem um lamentável patrocínio a uma actividade privada, com grave prejuízo da ética republicana e do princípio da separação das Igrejas e do Estado.

Quanto ao PR, por quem nutro grande estima pessoal, e sem quebra do respeito que lhe é devido, fico perplexo com a sua presença. Também não gostaria de o ver no lançamento de um projecto ateísta, igualmente respeitável, e muito mais adequado às suas convicções.

A vitória de Bush, que prometeu apelar à fé (espera-se que com entusiasmo equivalente ao de Bin Laden), vai contaminando o mundo onde a interferência das igrejas na política se manifesta cada dia mais perigosa.