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Dia: 15 de Setembro, 2004

15 de Setembro, 2004 André Esteves

Imaginem o que eu ouvi…

…alguém afirmar que mesmo que não acreditássemos em deus, o melhor era comportarmo-nos como se nele crêssemos. Imagino que seja o que um padre pedófilo faz diariamente.

15 de Setembro, 2004 Carlos Esperança

Notas piedosas

Espanha – O arcebispo de Madrid e Presidente da Conferência Episcopal Espanhola oferece ajuda ao povo espanhol para exigir ao Governo que, «ao menos nas escolas públicas, se mantenha a opção académica do ensino da religião para os alunos cujos pais assim o peçam».

Comentário: O «Episcopado espanhol exige direito de escolha da disciplina de religião». Não é um direito que reclama, é uma obrigação que quer impor – o ensino da religião católica na escola pública. Este é o conceito de liberdade religiosa da ICAR.

A mulher na ICAR – Defendendo que o «Reconhecimento do papel da mulher na sociedade é indispensável», JP2 exalta, na mensagem dirigida às Religiosas do Amor Divino «o seu apostolado através da animação litúrgica, da catequese, da formação nos oratórios juvenis, nas escolas profissionais e nos laboratórios, da assistência nas casas-família para mulheres sozinhas com filhos e nos centros de acolhida e escuta para pessoas deficientes e marginalizadas».

Comentário: Estas são as tarefas que JP2 considera destinadas a elevar o papel da mulher na sociedade.

João Paulo II – JP2 assegura que «Deus guia a história humana, apesar da presença de satanás e do mal».

Comentário: Provavelmente desiludido com o comportamento do patrão, atribui as culpas do estado do Mundo à concorrência – Satanás e o Mal. A única boa notícia é que Deus não é o único responsável por tanta desgraça. O próprio papa tem algum mérito.

15 de Setembro, 2004 jvasco

Cepticismo na Scientific American

Já aqui alertei para o artigo Mustangs, Monists and Meaning da Scientific American sobre o «preconceito da alma».

Mais tarde, vim a descobrir que o mesmo autor escreve regularmente uma coluna, sempre dedicada ao tema do cepticismo.

Assim sendo, descobri lá uma lista de artigos sobre os seguintes assuntos:

Milagre na rua das probabilidadescomo ocorrências extraordinárias acontecem regularmente

O número de Deus é superiorquais as probabilidades de Deus existir?

Morte por teoriacomo o obscurantismo médico pode matar

E os restantes, que ainda não li.

15 de Setembro, 2004 Palmira Silva

Fundamentalismos

Um post do Boss no Renas e Veados alertou-me para a extensão do campo de acção dos auto designados grupos pró-vida (humana, claro) americanos à trivial pílula contraceptiva. Com o pretexto de que a pílula tem uma eficiência de 70% na inibição da ovulação e impede a implantação no útero de um possível óvulo fertilizado, farmacêuticos e médicos fundamentalistas recusam-se a fornecer ou prescrever o atentado às leis divinas do “crescei e multiplicai-vos” ao abrigo de recentes leis estaduais, que o permitem por razões morais.

Um dos principais sinais históricos que encontramos invariavelmente em épocas de crise é a adesão de pessoas a vertentes (religiosas ou políticas) que se caracterizam por um radicalismo extremo e uma inflacção do sentimento de pertença a um grupo que assuma o papel de protector e detentor da VERDADE ou MORAL absolutas. Um maniqueísmo exacerbado dos nós (os bons) e dos outros (os maus), do Bem contra o Mal.

Não subscrevo a tese do choque civilizacional de Samuel Huntington (que previa há uma década que este seria inevitável no pós guerra fria), mas acho que de facto o maniqueísmo ou lógica bipolar existente antes da queda do muro era um elemento aglutinador que prevenia a eclosão dos conflitos regionais a que agora assistimos e o ressurgimento dos fundamentalismos religiosos, a praga anacrónica do século XXI.

De certa forma, o vazio emocional que a queda do muro proporcionou, e que destruiu um meme ideológico e, por arrastamento, todos os memes ideológicos que se construiram por oposição, foi rapidamente ocupado pelo memeplexo sempre subliminar da religião

No caso da religião católica a resposta (muito rápida) foi um negar crescente do concílio Vaticano II. Procura-se agora restaurar a antiga ordem, fundada no casamento (incestuoso) do poder político com o poder clerical. Com uma integração de todos os elementos da sociedade sob a hegemonia do espiritual representado, interpretado e proposto pela Igreja Católica (mais uma vez com o seu expoente máximo no Papa, não mais um primum inter pares). O inimigo a combater é a modernidade, com as suas liberdades e o seu laicismo.

Este é apenas mais um caso recente em que a laicidade, neste caso no Direito, é ameaçado por fundamentalistas religiosos. Que só vem reforçar o meu post anterior…

15 de Setembro, 2004 Palmira Silva

Direito e Ética

«Considerai o príncipe no seu gabinete. Dali partem as ordens graças às quais procedem harmonicamente os magistrados e os capitães, os cidadãos e os soldados, as províncias e os exércitos, por mar e por terra. Eis a imagem de Deus que, sentado no seu trono no mais alto dos céus, governa a natureza inteira… Enfim, reuni tudo quanto dissemos de grande e augusto sobre a autoridade real. Vede um povo imenso reunido numa só pessoa, considerai esse poder sagrado, paternal e absoluto; considerai a razão secreta, que governa todo o corpo do Estado, encerrada numa só cabeça: vereis a imagem de Deus nos reis, e tereis ideia da majestade real» Jacques Bossuet(1627-1704), A Política segundo as Santas Escrituras.

Subjacentes à teoria moderna do Estado existem conceitos teológicos secularizados, presentes por exemplo na relação Direito e Moral, já que o Direito é permeável a discursos morais para se legitimar. Por outro lado, a Moral pode utilizar-se do Direito para que os discursos por ela produzidos ganhem uma força vinculativa e de implementação efectiva. Como temos assistido no caso do Borndiep e, mais genericamente, no debate em relação à Interrupção Voluntária da Gravidez.

No seguimento dos meus posts sobre moral e ética e sobre as relações entre o Vaticano e o poder político (I, II, III, IV) vou tentar analisar numa breve abordagem histórica esta secularização.

A lei básica da ética e da moral, a chamada «Regra de ouro», comprovada por Heródoto em distintos povos da antiguidade, foi formulada nos Vedas, há pelo menos quatro milénios, por Confúcio, 500 a.C., no Zoroartrismo e em muitas outras religiões com vários enunciados:

«Eis a síntese do Dharma (Lei): não façais nada aos outros que, se fosse feito a vós, vos causaria mágoa» Mahabharata

«Não magoeis os outros com aquilo que vos magoa a vós» Shakyamuni

«Não imponhas aos outros o que tu próprio não desejas» Confúcio, Analectos 15,24

Na cultura grega, especialmente para Platão e Aristóteles, os filósofos que mais influenciaram a teologia cristã, a ética está intimamente vinculada à vida política (polis). Aliás, Aristóteles refere-se à ética como sendo um ramo da política, já que a primeira trataria do bem-estar individual, enquanto a segunda se ocuparia do bem comum. Na cultura grega, Direito, Moral e Política, são aspectos de uma mesma totalidade.

Os conceitos filosóficos da moral grega evoluíram na cultura romana para uma distinção entre Direito, Religião, Política e Moral. E o Direito romano é a pedra basilar do Direito nas sociedades ocidentais.

Os teológos cristãos cristianizaram a ética grega, a versão platónica por Agostinho de Hipona que reinterpreta a purificação e imortalidade da alma sugerida por Platão na elevação ascética indispensável para a compreensão dos desígnios de Deus.

O inescapável Tomás de Aquino retomou o conceito supremo da felicidade da ética aristotélica readaptado com Deus como fonte única da felicidade e descartando a razão que para Aristóteles era o caminho para a perfeição moral. Para a moral escolástica o bem comum deve subordinar-se ao bem supremo da salvação da alma. Ou seja, a Política e o Direito devem submeter-se ao direito divino e transcrever a moral cristã.

Com o Renascimento houve uma retoma do humanismo que voltou a reflexão ética para a esfera humana. No Iluminismo os filósofos defendem que a moral deve ser fundamentada não em valores religiosos e sim na compreensão sobre a natureza humana. A concepção mais expressiva é a natureza racional de Kant. Foi o falhanço do projecto renascentista que forneceu o pano de fundo no qual a nossa cultura se torna inteligível: uma cultura onde o debate moral é visto como indissociável da religião e esta continua transposta para o Direito, mesmo em Estados supostamente laicos.

Uma ética secular racional será muito mais forte que uma moral dogmática, até porque o que tem acontecido nos últimos tempos corrobora Feuerbach: «quando a moral se baseia na teologia, quando o direito depende da autoridade divina, as coisas mais imorais e injustas podem ser justificadas e impostas».

Quer a reflexão ética contemporânea (séc. XIX e XX), que recusa uma base exterior, transcendental para a moralidade, quer a base biológica dos comportamentos morais que o progresso científico demonstrou inequivocamente não permearam a nossa sociedade do século XXI. Pelo contrário, há cada vez mais exemplos perfeitamente anacrónicos da mistura dos obsoletos códigos morais religiosos no direito que rege uma série de países. E não falo apenas daqueles onde a Sharia é uma realidade, ou por exemplo, da Turquia, que desde Ataturk (1881-1938), é um estado laico, pretendia reintroduzir no seu código penal o adultério (feminino, especialmente) como um crime punido com pena de prisão. Como o artigo da Mariana recorda mesmo na Europa, que se diz laica, assistimos a grande pressão pela ICAR para a negação do laicismo, com ênfase a nível do Direito.

Urge uma intervenção ética capaz de criticar dogmas dominantes que, parafraseando Georges Bastide, possibilite a construção de novas formas de convivência humana através de um «esforço de lucidez, que separe, sem equívoco, a liberdade da alienação». Este é o desafio ético da contemporaneidade: a realização de um diálogo ético livre e igualitário numa sociedade marcada pela desigualdade, nomeadamente entre teístas e ateístas! E, especialmente, é fulcral que o direito seja absolutamente laico. Devemos respeitar as morais individuais mas não se deve deixar que a ética de um determinado grupo seja imposta a toda a sociedade.