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Dia: 7 de Agosto, 2004

7 de Agosto, 2004 Carlos Esperança

A fé e a tolerância

Acabado de regressar de uma aldeia da Beira Alta, publiquei no Diário uma crónica escrita há algum tempo, antes de ler os comentários aos artigos.

Lá estão os insultos bolçados com piedosa devoção, o ódio destilado em doses beatas e as habituais manifestações de fé num Deus que sabem morto e em textos sagrados que a mais rebuscada exegese não consegue tornar recomendáveis.

Enquanto alguns crentes perplexos se esforçam por compreender o mundo e tolerar os outros, há sempre alguns Torquemadas que odeiam a liberdade e sonham autos de fé. Não lhes basta a combustão das almas dos hereges e as perpétuas penas que o seu Deus pusilânime e vingativo lhes reserva depois da morte, querem a punição dos réprobos, em vida, através do braço secular. E, como todos os prosélitos, anseiam por condenar ao silêncio os heterodoxos.

Como é bela a fé! Queimem-se bibliotecas, ardam os heréticos, abaixo a liberdade, guerra ao livre-pensamento! Depois, Deus, distribuído ao domicilio, servido em doses industriais nas igrejas, mesquitas e sinagogas, reabilitado o prestígio antigo, julgará os vivos e os mortos na certeza de que não consentirá mais vida para além das orações, dos jejuns, da abstinência, da castidade e da mortificação.

Os saprófitas de um Deus assim estão igualmente mortos.

7 de Agosto, 2004 Carlos Esperança

A festa de Santa Filomena. Crónica piedosa

No início da década de sessenta um brasileiro bem sucedido voltou ao Cume* para rever amigos e embasbacar os autóctones com o sucesso. Trouxe presentes, distribuiu pentes e rebuçados, lançados aos garotos à rebatina e, à igreja, ofereceu um guião e dois pendões que mandou vir do Porto, uns paramentos a estrear e dinheiro suficiente para a festa de Santa Filomena.

A bem-aventurada tinha provas dadas na cura de animais, designadamente ovelhas, que a gripe dizimava e estropiava no inverno e, quanto maior a desgraça, mais crescia o pasmo pelas que escapavam e maior era a devoção. Tinha sido o caso, nesse ano, por causa das chuvas e dos sempre insondáveis desígnios divinos. Era a primeira homenagem pública, a augurar o início de uma tradição e de um amparo ainda maior. A festa há muito que a merecia a santa, mas os proventos da arrematação dos pés e orelhas de porco, de duas ou três dúzias de ovos e de alguns enchidos provenientes do pagamento de promessas, mal chegavam para lhe pagar a missa e comprar algum adorno.

Valera a generosidade do brasileiro que pôs os paroquianos em excitação, com recados enviados a parentes e amigos e data da festa anunciada.

Com farinha peneirada, ovos guardados e açúcar comprado, apalavrada a banda da Parada e encomendado o foguetório no Porto da Carne, a uma semana da festa, veio o pároco anunciar, durante a missa, que Sua Santidade tinha declarado falsa a santa, sacrílega a devoção e, assim, era impossível a festa. Manifestou tristeza suficiente, por solidariedade para com os paroquianos, que da decisão papal não cabia recurso. Ainda propôs outro santo, com certificado de garantia, de sexo diferente e idêntica virtude, para a substituir nos festejos. Deixou à reflexão dos paroquianos. E do brasileiro, subentendia-se. Qual quê? Goradas as expectativas, enxovalhada a crença, arruinadas as orações cuja permuta de intenções não admitia retroactividade, só restava um vago ressentimento e uma sensação de injustiça e impotência.

O brasileiro a quem a generosidade assegurara lugar cativo na primeira fila da igreja ficou lívido, primeiro, a vacilar na fé e nas pernas, ressentido depois e a remoer vingança.

Impediu-o o medo do Inferno e a inutilidade de demandar o papa de exigir a devolução do óbolo, ficando-se pela desolação e algumas obscenidades com sotaque, enquanto os paroquianos se dividiram entre o brasileiro e os sacramentos, a devoção e o padre, o papa e a santa, acabando por regressar ao redil e à fé dirigida de Roma. Apenas o brasileiro, por brio, passou a frequentar a missa em Vila Fernando, com outro padre, no tempo em que ainda se demorou. Manteve a devoção mas trocou de corretor.

Ninguém percebeu porque se demitiu do altar uma santa que lograra prestígio igual ao de santa Bárbara a amainar trovoadas e maior que o de S. Sebastião que, para além de mártir, não se lhe conhecia na paróquia outro feito que o recomendasse, não desfazendo, é claro, na seta que o trespassava em perpétuo sofrimento. Era difícil rezar a santos que não faziam milagres quando se apeava quem os fazia.

Creio que ao medo do castigo divino e à falta de alternativas se ficou a dever a persistência na fé, posta em causa de forma demolidora por motivos insuficientemente explicados e com despesas já feitas.

Não estralejaram foguetes, não se ouviram os acordes da banda, não se provaram as guloseimas. A imagem, ferida na estimação e na virtude, foi parar à sacristia, por decreto, condenada à solidão e ao esquecimento, à espera de que algumas gerações de crentes se finassem para reaparecer, quem sabe, com outro nome e renovados poderes. Assim a fé e a sociedade o consintam ainda. Os mordomos ficaram designados para as próximas festividades conservando o prestígio e as prerrogativas.

A santa e o brasileiro nunca foram ressarcidos da desgraça.

* aldeia do concelho da Guarda a cerca de 10 km.