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Dia: 16 de Maio, 2004

16 de Maio, 2004 Carlos Esperança

Da linha de montagem da ICAR saíram seis novos santos

O Papa João Paulo II presidiu este domingo no Vaticano à cerimónia de canonização de seis novos santos, entre os quais uma pediatra italiana símbolo da luta da Igreja Católica contra o aborto.

Na lotaria das canonizações deste domingo 5 das 6 saíram à casa – 3 padres, 1 monge e uma freira.

A única que não pertencia aos quadros da ICAR era uma pediatra que preferiu não fazer um aborto, a criar quatro crianças que deixou órfãs.

A ICAR sempre preferiu a defesa dos embriões e dos fetos à das pessoas. A estas frequentemente as purificou pelo fogo por crimes de bruxaria, apostasia, judiaria ou outros.

Em 25 anos e meio de pontificado, João Paulo II proclamou 1.330 beatos e canonizou 482 santos, segundo as estatísticas do Vaticano.

Atendendo aos emolumentos que rendem, os cofres do Vaticano devem ter-se recomposto de alguns negócios mais escuros e ruinosos do tempo do arcebispo Paul Marcinkus, presidente do Banco do Vaticano, a quem João Paulo II nunca autorizou a extradição para Itália, a fim de ser julgado.

16 de Maio, 2004 Mariana de Oliveira

Paradoxos de uma cidade

Coimbra, Queima das fitas 2004, 06h30:

Peregrinos iniciam o seu caminho em direcção a Fátima.

Estudantes peregrinam em direcção a casa.

16 de Maio, 2004 Carlos Esperança

A escola e o presépio da minha infância

Para os que nasceram em democracia e não conheceram as escolas primárias da ditadura, deixo aqui um esboço do pardieiro onde aprendi as primeiras letras, publicado no JF em 19-09-2003:

Bem crucificado e suavemente chagado, numa cruz de madeira dependurada na parede, penava um Cristo de bronze em resignada agonia, ladeado à direita por uma fotografia de um homem de bigode, fardado, conhecido por marechal Carmona, e à esquerda por um eterno seminarista, com ar de gato-pingado, que infundia terror ? o Professor Salazar. Na mesma parede, em frente dos alunos, a razoável distância e muitos fungos depois, quedava-se a Senhora de Fátima, poisada numa mísula, alheada da conversão da Rússia e da salvação do mundo. Mais abaixo, à esquerda, ficava o quadro preto e o mapa do corpo humano e, à direita, rasgados, um mapa de Portugal Continental, outro das Ilhas Adjacentes e das Colónias e o mapa-múndi.

O soalho resistia aos buracos, numerosos e amplos, que a humidade e o uso se encarregavam de alargar. As carteiras alinhavam-se em rigorosa geometria com lugares destinados a cerca de quarenta garotos de ambos os sexos distribuídos pela primeira, segunda e quarta classes. Entre quinze a vinte estavam na sala oposta a frequentar a terceira, confiados à senhora Noémia, regente escolar.

Nos dias de chuva subvertia-se a ordem, numa complexa gincana de carteiras, para evitar que os pingos de água que escorriam do tecto acertassem nos tinteiros e salpicassem de azul a roupa das crianças e os tampos de madeira.

No intervalo, meninos e meninas, em amplas correrias e direcções opostas, procuravam os quintais próximos para se aliviarem dos fluidos que os apoquentavam.

À entrada da escola o presépio anunciava todos os anos o Natal. Na armação de tábuas e pedras cobertas de musgos, um menino de barro, seminu e de perna alçada, jazia em decúbito dorsal sobre uma caminha de palha centeeira. Era o Menino Jesus. De um lado uma virgem colorida, moderadamente recatada e com pouco uso, substituía a que se partira, interessada na companhia do filho que herdara. Do outro, um S. José, a quem a corrosão deixara em pior estado do que o dogma da Imaculada Conceição, parecia um erro de casting, indiferente ao aspecto, perdidas as cores, diluídas as formas, conformado com os olhares e as súplicas, incapaz de operar milagres, resignado com o frio de Dezembro.

O burro e a vaca comportavam-se a preceito, facilmente se adivinhando o gosto por erva se eles e esta fossem verdadeiros.

Os reis magos, eternos almocreves com ar de ladrões de camelos, virados para uma estrela recortada em papel colorido, permaneciam imóveis na lendária caminhada, quais amoladores de tesouras, à espera de fregueses para ganharem o sustento e um presente para o Menino.

As ovelhas que placidamente decoravam a montanha eram figurantes experientes, desinteressadas da importância que acrescentavam ao quadro e do exemplo de submissão que transmitiam. Nem um só carneiro as acompanhava, talvez para lembrar que é na renúncia ao prazer que se encontra a redenção da alma. Apenas um cão e o pastor.

Reflicto hoje sobre a predilecção por musgos, muitos musgos, para cobrir o chão do presépio. Na religião tudo se deve cobrir ou, no mínimo, disfarçar. Talvez esteja na ocultação dos órgãos de reprodução, característica das plantas criptogâmicas, a razão da preferência, a funcionar como metáfora.

Ah! Já me esquecia, pintados de branco, anjos de barro, junto ao caminho de serradura que conduzia à manjedoura, voavam baixinho, com asas quebradas, incapazes de regressar ao Céu. E o algodão em rama imitava os flocos de neve que lá fora rodopiavam ao sabor do vento. Eu gostava do Presépio. Não era o catecismo a aterrorizar-me com o Inferno onde as almas que ali frigiam, em perpétua flutuação no azeite fervente, eram mergulhadas com um garfo de três dentes empunhado pelo diabo.

A minha escola caiu, pelo Natal, ficando de pé uma única parede e a fé das pessoas que atribuíram à protecção divina a ausência de aulas durante a derrocada.