Loading

Dia: 5 de Abril, 2004

5 de Abril, 2004 Carlos Esperança

LAICIDADE BÍBLICA NA ESCOLA PÚBLICA ?



À Escola está cometida a importante função institucional de ensinar e instruir, de formar e educar as novas gerações da nossa sociedade e, segundo creio, todos estaremos de acordo quanto a essa sua especial e particular – ainda que não exclusiva – responsabilidade social, cultural e política.

Mas, falemos claro : no essencial, à Escola cumpre ensinar a ciência e não difundir a fé, fomentar o conhecimento e não celebrar a crença, estimular a pesquisa e não exercer a catequese, proporcionar a crítica e não estabelecer o dogma ; tal como também lhe compete formar para a cidadania – isto é, educar para a abertura e a tolerância culturais, para a inclusão e a solidariedade sociais, para a intervenção e a participação cívicas – e não orientar para a adesão a qualquer sistema ideológico ou filosófico, para a filiação política partidária ou para a convicção e a devoção religiosa.

É nesse sentido claro e positivo que a « laicidade » se assume na Escola e é pelas largas possibilidades formativas que ela permite e favorece que o « laicismo » se afirma enquanto princípio essencial à caracterização de um ensino moderno, plural e democrático, de um ensino efectivamente capaz de veicular – e até de impulsionar – o projecto da sociedade plural, aberta e inclusiva que hoje pretendemos edificar.

Se a laicidade visa impedir que o « espaço público » – isto é, o « espaço de todos » – possa ser de alguma forma controlado por um qualquer grupo social dominante ( tenha ele uma matriz ideológica, religiosa ou outra ) e, por essa via, visa assegurar uma efectiva possibilidade universal de acesso ao seu uso e fruição, recear que o laicismo se possa transformar numa « religião dominante » constitui um completo absurdo : o Estado deve efectivamente ser laico e garantir a laicidade do espaço público, precisamente para permitir que a sociedade possa ser plural e que, na sua totalidade, dele possa plenamente beneficiar.

Mas a separação entre Estado e Igreja, apesar de claramente consagrada na Constituição da República, não constitui a nossa tradição ( ! ) e essa situação explica – mas não justifica – a forma como os católicos portugueses se arrogam um estatuto especial na nossa sociedade ( cf : “Concordata” e “Lei da Liberdade Religiosa” ) e persistem em manter uma acção prosélita contínua e intrusiva no nosso quotidiano.

A recente iniciativa de promover a cópia manuscrita da Bíblia nas nossas escolas públicas constituiu mais um triste exemplo daquela prática.

Luis Manuel Mateus ( Presidente da Direcção )

5 de Abril, 2004 Mariana de Oliveira

Momento Poético

A VINHA DO SENHOR

de Guerra Junqueiro

I

Existiu noutro tempo uma vinha piedosa

Doirada pelo Sol da alma de Jesus,

Uma vinha que dava uns frutos cor-de-rosa,

Vermelhos como o sangue e puros como a luz.

Inundavam-na d’água os olhos de Maria,

E os virgens corações dos mártires, dos crentes,

Eram a terra funda aonde se embebia

A mística raiz dos pâmpanos virentes.

Produzia um licor balsâmico, divino,

Que aos cegos dava luz, aos tristes dava esp’rança,

E que fazia ver, na areia do destino,

A miragem feliz da bem-aventurança.

Aos mortos restituía o movimento e a fala,

Escravizava a carne, as tentações, a dor,

E transformou em santa a impura de Magdala,

Como transformou Abril um verme numa flor.

Bebê-lo era beber uma virtuosa essência

Que ungia o coração de perfumes ideais,

Pondo no lábio um riso ingénuo de inocência,

Como o d’água a correr, virgem, dos mananciais.

Dava um tal esplendor às almas, tal pureza,

Que nos circos de Roma até se viu baixar,

Diante da nudez das virgens sem defesa,

Ao magro leão da Núbia o coruscante olhar.

II

Mas passado algum tempo a humanidade inteira

De tal modo gostou desse licor sublime,

Que o êxtase cristão tornou-se em bebedeira,

E o sonho em pesadelo, e o pesadelo em crime.

Nas solidões do claustro as virgens inflamadas

Co’as fortes atracções da mística ambrosia

Torciam-se, febris, convulsas, desvairadas,

Meretrizes de Deus numa piedosa orgia.

É, que no vinho antigo ia à noite o demónio

Lançar co’a garra adunca uma infernal mistura

De mandrágora e ópio e heléboro e estramónio

Verde-negro e viscoso estrato de loucura.

Quando uivava de noite o vento nas campinas,

Via-se pela sombra, oblíquo, Satanás,

Colhendo aos pés da forca ou buscando entre as ruínas

Ervas, vegetações, prenhes de essências más.

Era o filtro subtil dessas plantas de morte

Que fazia da alma um dervixe incoerente,

Uma bússola doida à procura do norte,

Uma cega a tactear no vácuo, ansiosamente!…

E a taça do veneno estonteador e amargo

No fúnebre banquete ia de mão em mão,

Produzindo o delírio, a síncope, o letargo,

E em cada olhar sinistro uma cruel visão.

Uns viam a espectral sarabanda frenética

De esqueletos a rir e a dançar com furor

Em torno à Morte podre, impudente, epiléptica,

Com dois ossos em cruz rufando num tambor.

Outros viam chegado o pavoroso instante

Em que um monstro de fogo, um dragão aerolito,

Dava na terra um nó co’a cauda flamejante,

Arrebatando-a, a arder, através do infinito.

E então para fugir ao desespero e ao pânico

Bebiam com mais ânsia o filtro singular,

Até à epilepsia, ao turbilhão tetânico

Do Sabá desgrenhado e erótico, a espumar!

E à força de beber o trágico veneno

Tombou por terra exausta a humanidade enfim,

Como em Londres, de noite, ao pé dum antro obsceno

Cai sobre a lama inerte um bêbado de gim.

III

Mas nisto despontou a esplêndida manhã

Dum mundo juvenil, robusto, afrodisíaco:

A Renascença foi para a embriaguez cristã

A excitação vital dum frasco de amoníaco.

E na vinha de Deus ainda florescente

Começou a nascer por essa ocasião

Um bicho que enterrava escandalosamente

Nos pâmpanos da crença as unhas da razão.

Propagou-se o flagelo; o mal recrudesceu;

A colheita ficou em duas terças partes:

Chega o oídio Lutero, o verme Galileu,

E cai-lhe o temporal de Newton e Descartes.

Embalde Carlos nove, Inácio e Torquemada,

Catando esses pulgões das bíblicas videiras,

Os entregam à roda, ao cadafalso, à espada,

Ou os queimam por junto aos centos nas fogueiras.

O estrago cada vez era maior, mais forte;

Apesar da realeza, o trono e a sacristia

Andarem sacudindo o enxofrador da morte

No formigueiro vil das pragas da heresia.

Por último, Voltaire-filoxera invade

Essa encosta plantada outrora por Jesus,

E das cepas ideais da escura meia-idade

Ficaram simplesmente uns velhos troncos nus.

IV

Mas como havia ainda alguns consumidores

Desse vinho que o Sol deixou de fecundar,

Uns velhos cardeais, hábeis exploradores,

Reuniram-se em concílio a fim de o imitar.

E é assim que Antonelli, o verdadeiro papa,

O químico da fé, um grande industrial,

Fabrica para o mundo ingénuo uma zurrapa

Que ele assevera que é o antigo vinho ideal.

Para isso combina os vários elementos

Que compõem esta droga: o nome de Maria,

Anjos e querubins, infernos e tormentos,

Bastante estupidez e imensa hipocrisia.

Põe tudo isto a ferver, liga, combina, mexe,

E, filtrando através duns textos de latim,

Eis preparado o vinho, ou antes o campeche,

Que a saúde da alma há-de arruinar por fim.

Mas como o paladar de muitos europeus

Quase prefere já (horrível impiedade!)

A falsificação do vinho do bom Deus,

O vinho genuíno e puro da verdade;

E como já por isso, (assim como era dantes)

A Igreja nos não queime e o rei nos não enforque,

A cúria procurou mercados mais distantes,

O Japão, o Peru, a Austrália e Nova Iorque.

Os comis-voyageurs de Roma – os Lazaristas

Com as carregações vão através do oceano,

Por toda a parte abrindo os armazéns papistas,

A fim de dar consumo ao vinho ultramontano.

Em cada igreja existe uma taberna franca

Para impingir a tal mixórdia, o tal horror,

Ou seca ou doce, ou velha ou nova, ou tinta ou branca,

Segundo as condições e a fé do bebedor.

Para Espanha vão muito uns vinhos infernais,

Um veneno explosivo e forte que produz

Um delírio tremente – o General Narvais,

E um vómito de sangue – o Cura Santa Cruz.

Portugal quer vinagre. A Itália quer falerno.

Veuillot quer aguarrás que ponha a língua em brasa.

E John Bull, por exemplo, um pouco mais moderno,

Manda ao diabo a botica, e faz a droga em casa.

Ao povo, esse animal que o Padre Eterno monta,

Como é pobre, coitado, então a Santa Sé

Fabrica-lhe uma borra incrível, muito em conta,

Um pouco de melaço e um pouco d’aguapé.

A fina flor cristã, a flor altiva e nobre,

O rico sangue azul do bairro S. Germano,

Para quem o bom Deus é um gentil-homem pobre

A quem se dá de esmola alguns milhões por ano,

Essa, como detesta os vinhos maus, baratos,

Como é de raça ilustre e débil compleição,

Mandam-lhe um elixir que serve para os flatos,

Ou para pôr no lenço ou ir à comunhão.

De resto há quem, bebendo essa tisana impura,

Sinta a impressão que outrora o néctar produzia.

São milagres da fé. Ditosa a criatura

Que no ruibarbo encontra o sabor da ambrosia.

E eu não vos vou magoar, ó almas cor-de-rosa

Que inda achais neste vinho o esquecimento e a paz!

Não insulto quem bebe a droga venenosa;

Acuso simplesmente o charlatão que a faz.