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15 de Janeiro, 2024 Eva Monteiro

Reflexões sobre a Origem da Crença

O nosso medo da inevitável finitude da vida humana levou-nos a procurar o divino. É certo que devemos ter questionado acerca dos fenómenos naturais que nos rodeavam e que não tínhamos ainda como explicar. Mas creio que acima de tudo, em algum momento da nossa existência como seres pensantes mas também profundamente emocionais, alguma mãe deve ter passado dias a cuidar de um filho moribundo em absoluto desespero. Algum caçador se deve ter visto caçado e, tendo a natureza como leito da morte em solidão, deve ter-se questionado se aquele momento seria mesmo o fim.

Não me inclino a pensar que a crença no divino tenha resultado na expetativa de uma vida pós-morte. Pelo contrário, parece-me que a esperança de que “isto” não fosse a nossa única existência, nos levou a imaginar um ser que pudesse garantir que o nosso sofrimento não seria em vão, nem que o fim fosse só isso.

Peçam, e será dado; busquem, e encontrarão; batam, e a porta será aberta.

Mateus 7:7-8

Sendo o ser humano dotado de infinita imaginação, neste caso, procurar leva mesmo à descoberta. Dizem os americanos que devemos parar de escavar quando encontramos um buraco. Foi precisamente isso que nos falhou. Em vez de criarmos uma ideia que nos aliviasse o fardo da morte, conseguimos ir muito além e criar um conceito que não só justifica a morte, como a torna apetecível. Pior do que isso, nem tampouco nos ficamos pelo desejo da morte individual, tivémos que extrapolar para o coletivo. Deixou de nos bastar que a morte passasse a ser uma sedutora amiga, para a desejarmos para toda a humanidade. Há-de vir o profeta, ou voltar, consoante o delírio. E com ele virá o apocalipse em que os vivos e os mortos (não-mortos? só um pouco mortos?) serão julgados e assistirão ao fim dos tempos.

O Juízo Final (Hieronymus Bosch) 1482

Para muitos, o apocalipse está iminente. Aliás, muitas pessoas viveram vidas inteiras convencidas de que veriam o fim dos tempos. E de que o fariam com prazer, vendo vizinhos e familiares arder no fogo eterno, num julgamento divino que não poderia distinguir-se do seu próprio. Questiono-me com frequência que tipo de dissonância cognitiva leva a que uma pessoa que se considera suficientemente merecedora de estar na presença do inefável divino, se comporte com esse nível de mesquinhez. Será porque acreditam que basta arrependerem-se? Será que é porque se consideram parte do povo escolhido de deus? E assim sendo, estão acima da moral que se exige aos restantes mortais?

Eles receberam ordens para não causar dano nem à relva da terra, nem a qualquer planta ou árvore, mas apenas àqueles que não tinham o selo de Deus na testa.

Apocalipse, 9:4

Ver o fim dos tempos é apenas ver o fim dos vivos, não o fim de tudo – tudo, tudo, mas mesmo tudo. E nem é um conceito particularmente original. Pelo contrário, vai aparecendo em quase todas as culturas ao longo dos tempos, num esforço de, digamos, acertar contas. É que mais uma vez, encontrámos um buraco mas continuámos a escavar. Já os antigos egípcios acreditavam que as suas almas seriam pesadas em comparação com uma pena. Só os justos, os que viveram de acordo com as regras divinas poderiam sentir essa leveza de espírito e entrar no reino dos bem aventurados. Mas, em data a anunciar, eis que viria, para muitas outras culturas, incluíndo aquela que melhor conhecemos hoje, a morte das mortes, o fim dos fins, o julgamento final.

Não lhe retiro valor pelo dramatismo, ainda que apresente graves problemas logísticos, que rivalizam apenas com a noção de que dois pinguins da Antártida viajaram mais de 13 mil quilómetros para entrarem na arca de Noé. É estrondoso pensar num evento dessa envergadura. Os mortos todos a voltar à vida, para serem julgados novamente, alguns a gritar “non bis in idem”! Quem acredita que está entre aqueles que vão sair ilesos desse espetáculo pirotécnico bem pode rir dos desgraçados dos pecadores, pior, ateus, a sofrer a maior confusão das suas vidas. Ou mortes. É que, para quem tem deus ao seu lado, há permissão para tudo, até para ser cruel. E para quem está acima do bem e do mal, até se pode julgar duas vezes o mesmo crime.

Disseram-me muitas vezes que sem deus não há moral. Sem deus, não resta ninguém acima de mim que eu tema. Sem esse temor, não há castigo que me obrigue a viver de forma justa. Sem deus, eu aparentemente sentir-me-ia tão livre, tão soltinha, que desatava a matar e a roubar, a pilhar e a esquartejar. Como ateia e até à data, diz a totalidade desses atos que me apeteceu. Ora, sendo que não vos escrevo de nenhum estabelecimento prisional, é fácil concluir que, por ser ateia, não me apetece propriamente arrancar os órgãos internos a ninguém. Pelo menos não depois de sair do trabalho. É que a justiça dos homens faz um excelente trabalho a manter-me nos eixos. Quem dera que a justiça divina tivesse impedido fosse quem fosse de cometer crimes horrendos, especialmente aqueles que aconteceram e acontecem no seio de muitas (todas? quase todas?) as organizações religiosas que conheço.

Pior do que isso. Significa então que os crentes só ajudam o próximo por temor a deus? Só amam por temor a deus? É apenas medo que os impede de cometer atrocidades? Às vezes penso que sim, que é isso que pensam sobre si próprios. E às vezes, cai-lhes um pouco os véus de moralidade divina. É nessas alturas em que vejo pessoas que rezam todas as noites, dizer que os sem-abrigo não querem é trabalhar, que quem anda de mini-saia é que anda aí a pedi-las, que não ser igual à regra é só moda para chamar à atenção, que tanto aperta a mão a este como o pescoço àquele. Se são todos? Não. Mas são muitos e eu cresci rodeada deles.

A diferença entre o ateu e o crente não é que o ateu não tem medo da morte. É que o ateu escolhe não se iludir. E ao fazê-lo, vive mais plenamente a sua vida, com a consciência de que não vai a lado nenhum depois, nem voltar de lá eventualmente. Ama mais livremente, porque ama sem motivos ulteriores. Quando faz algo pelo próximo, é porque realmente quer ajudar, não porque está a somar pontos. Vive consciente de que é insignificante neste universo que ninguém criou. Vive sabendo que ao morrer, devolve a matéria às estrelas.

Não me digam que não tenho pelo que viver por não acreditar numa vida após a morte e no deus que a garante. Para parafrasear Seth Andrews, não deixei de ter uma razão para viver, deixei de ter uma razão para ansiar a morte.

13 de Dezembro, 2023 Onofre Varela

“COM A RELIGIÃO NÃO SE BRINCA”, DISSE ELE.

Texto de Onofre Varela, publicado na imprensa, em que reflete sobre uma frase que ouviu. Afinal, “com a religião não se brinca”?

Os dirigentes dos partidos políticos da Direita têm uma enorme incapacidade de perceberem a vida dos pobres que alguns deles constantemente desrespeitam.

Penso estar na memória de todos nós a infeliz frase de Assunção Cristas (enquanto presidente do CDS), proferida em época de eleições concorrendo à presidência da Câmara de Lisboa: “Calço as galochas e vou aos bairros sociais”. A sua infeliz frase demonstrou que ela não sabe que um bairro social não é uma pocilga, e pior do que isso: imagina que é!… E imaginando-o, colocou num patamar muito baixo a dignidade de quem habita os bairros, esquecendo que a dignidade daquela gente é igual à sua. Ela só tem mais dinheiro e um curso académico superior, o que não é sinónimo de ser mais digna!

Já Marcelo Rebelo de Sousa, com todas as suas demonstrações de carinho, levando ânimo a quem sofre, não pôde deixar de escorregar nas palavras e nas ideias quando sugeriu a um sem abrigo, num acto de distribuição de comida em noite de Natal, que levasse para casa o resto do pão que não comeu, porque “é muito bom para fazer torradas”… esquecendo que um sem-abrigo não tem casa, não tem torradeira, nem fogão, nem manteiga…

Quem sempre viveu numa casa aquecida e confortável, com a dispensa bem fornecida e o frigorífico cheio, não imagina o que é passar-se mal, passar fome e frio, ter os bolsos sem dinheiro, não ter cartões de débito e muito menos de crédito. Referi Cristas e Marcelo em casos concretos… mas a extrema Direita actualmente no Parlamento tem o mesmo desrespeito por quem sofre; e o discurso aparentemente contrário não é mais do que isco de anzol para ser mordido pelos incautos.

A um outro nível menos social no campo das ideias que animam (e desanimam) a nossa sociedade (e continuando a retroceder no tempo alguns anos), ouvi um alto dirigente do CDS dizer num congresso que aconteceu em Lamego, num discurso inflamado debitado para uma plateia ideologicamente igual ao palestrante, a frase “com a Religião não se brinca”, referindo-se a algo que uma dirigente do Bloco de Esquerda teria dito sobre a estátua do Cristo Rei de Almada.

Ele não sabe que a Religião não é uma estátua!… Ele não sabe que se pode (e deve) brincar com tudo… menos com a dignidade e a saúde dos cidadãos, o bem estar de todos nós e o ensino das populações, mais o pão dos trabalhadores pagos miseravelmente. 

Partidos de Direita travestidos de sociais-democrátas, defendem ordenados baixos e também defendem a ideia do “trabalhador-descartável”. Muitos dos empresários que apoiam este tipo de política, brincam com a vida das famílias que têm como único sustento a força do seu trabalho vendido ao patronato… e o sentimento religioso é usado sem pudor por partidos políticos que, efectivamente, brincam com o sentimento religioso do Povo, explorando-o também na crença. Estes discursos da Direita são falsos como Judas. Se Jesus Cristo voltasse à Terra, não permitiria a entrada na sua Igreja a muitos dos que se afirmam “tão-democratas-cristãos” e têm atitudes “tão-pouco-cristãs”. 

E também não sei se Jesus aceitaria entrar numa igreja Católica!…

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico) 

Imagem de Pexels por Pixabay
11 de Dezembro, 2023 Onofre Varela

O medo da morte e a eternidade

Texto de Onofre Varela previamente publicado na imprensa, em que reflete sobre o medo da morte.

O medo é um sentimento que funciona como escudo protector da vida, activando o sentido de alerta perante situações de perigo. No bordo de uma falésia, qualquer animal, incluindo o Homem, recua com medo de cair. Só as aves se abeiram e saltam no vácuo… porque voam.

Nós compreendemos o medo pelo sentimento que temos dos riscos que corremos quando nos encontramos em perfeito estado de consciência… o que parece não acontecer aos suicidas. É normal e natural evitarmos tudo quanto possa apresentar risco de vida: não ingerimos veneno, não saltamos de uma ponte nem nos deitamos na linha do comboio (aqui fica uma dica para os candidatos ao suicídio: esta ideia da linha do comboio deve ser evitada… porque as frequentíssimas greves dos ferroviários fazem gorar o desejo do suicida).

Nós não temos, só, medo da morte; também receamos o futuro… que não sendo propriamente sinónimo de morte, já foi mais entendido como promessa de melhor vida do que o é neste tempo de má globalização. O futuro apresenta-se cada vez mais carrancudo e armadilhado para a maioria das pessoas que já têm, no tempo presente, um inferno sem porta de saída. Inferno imposto por guerras, lutas políticas violentas e pelos “mercados”, desde o do trabalho ao económico, embora o nosso inferno seja um paraíso para quem se alimenta de tais “mercados”.

Na consciência dos nossos medos, também tem lugar a morte natural. Todos temos medo de morrer. Mesmo quando vivemos em sofrimento social ou de saúde, queremos continuar a viver na convicção de o futuro nos premiar com melhor sorte (mesmo sabendo-o armadilhado).

Em situação normal numa sociedade civilizada, a vida apresenta-se atractiva e é uma alegria vivê-la junto de quem gostamos, sentindo-nos realizados vendo o crescimento dos nossos filhos e netos. Pôr um ponto final neste gozo que sentimos pela vida… só pode ser uma maldade!…

Ninguém, no seu perfeito estado de saúde mental, quer morrer. Mas o fim da vida é a coisa mais certa com que podemos contar. Só porque nascemos, haveremos de morrer. O nascimento activa o relógio da contagem decrescente. Após cada dia vivido, temos um dia a menos para viver. A morte é o nosso fim natural, e dela ninguém pode fugir. Desta vida ninguém sai vivo.

Algum dia a Ciência conseguirá vencer a morte?… Para já, consegue prolongar-nos a vida, aumentando o “prazo de validade” marcado pela estatística… o que já não é nada mau. Espero que jamais se vença a morte, porque se fossemos eternos não cabíamos todos no mundo… a não ser que se cancelassem os nascimentos! Mesmo assim, garantíamos lugar físico para termos chão, mas a sociedade não evoluía porque éramos sempre os mesmos, com as mesmas ideias e a porta fechada à renovação… por isso a eternidade seria uma chatice… só nos apeteceria morrer!…

A eternidade do corpo conservando todas as faculdades anímicas, é mito. A eternidade só é possível na memória histórica, não na matéria (pelo menos não o é em organismos complexos).

Mesmo sabendo que somos mortais, gostaríamos de viver eternamente e alimentamos esse gosto criando a ideia da vida eterna numa suposta existência espiritual a usufruir depois da morte, num suposto céu, junto do igualmente suposto deus que criamos à nossa imagem e semelhança, e à medida dos nossos desejos, da nossa angústia e da nossa ignorância.

Acredito que seja um consolo crer na vida espiritual eterna. Quem crê nela, na esperança de se encontrar com o deus da sua crença depois de morrer, terá nessa ideia um repelente para o medo da morte, ajudando a aceitar a naturalidade do fim com a muleta da fantasia religiosa na convicção de que, finalmente, irá encontrar-se com o seu deus e ser feliz. É o derradeiro consolo que configura a face positiva da crença por ajudar a aceitar a morte sem dramas maiores, mesmo que com base numa mentira que o crente aceita por verdade.

Na verdade natural das coisas naturais, depois de se morrer não se tem consciência… nem nada!… Não se sofre nem se goza, porque a hipotética alma não tem sistema nervoso nem cérebro!… A felicidade ou o sofrimento “post mortem” é anedota. Morrer é como apagar a chama de uma vela… aquela chama “morre” completamente, deixa de existir, não se traslada para um outro hipotético pavio no céu das velas de estearina!…

É por isso que quem morre nunca reclama da vigarice que lhe venderam da promessa de vida eterna “post mortem”. E os crentes vivos crêem (por isso são crentes) que se o morto não reclama… é porque está bem e se recomenda!…

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

OV

Imagem de Milos Duskic por Pixabay
9 de Dezembro, 2023 Onofre Varela

O “25 de abril” para a Fé em Espanha

Texto de Onofre Varela publicado na imprensa escrita, a propósito de uma notícia de 25 de abril que aborda a alteração na fiscalidade das confissões religiosas em Espanha.

O jornal espanhol El País, na sua edição do dia 25 de Abril de 2023, insere uma notícia dando conta de que o “governo equiparou a fiscalidade de todas as confissões religiosas”. Ficamos a saber que foi dado o mesmo tratamento fiscal às religiões estabelecidas (e acreditadas) em Espanha. O governo assinou um acordo com a Igreja Ortodoxa, a União Budista, a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias (os Mórmons) e as Testemunhas de Jeová, pelo qual estas confissões desfrutam dos mesmos benefícios fiscais (incluindo a isenção de impostos em bens imobiliários [IMI], e em produtos destinados ao culto).

Estas isenções agora alargadas a outras confissões já eram praticadas na Igreja Católica, na Federação de Identidades Religiosas Evangélicas, na Federação das Comunidades Israelitas e na Comissão Islâmica. Perante estas isenções de impostos, a notícia garante que “Espanha dá um passo relevante na sua aposta pela laicidade e pela condição de um Estado aconfessional com a equiparação fiscal de todas as religiões”.

“Aposta na laicidade”?!… Parece-me haver aqui algum equívoco!… Todas as religiões deveriam ser comparadas a empresas, porque são isso mesmo que elas são: empresas da indústria da fé! (Tal como os clubes de futebol são indústrias do pontapé na bola). As religiões negoceiam com a fé dos crentes mantendo fábricas como Fátima e Meca, sem mãos a medir para escoamento do produto que fabricam carregando a bateria da fé dos crentes. Por isso deveriam ser tributadas como quaisquer outros serviços… como os de consultoria, por exemplo.

Este “pacote de isenções” parece-me que, numa sociedade justa, seria melhor empregue se contemplasse as padarias, porque o pão é essencial para toda a gente e não só para alguns… e as frutarias pela mesma razão do pão. Também a água e a energia eléctrica deveriam usufruir dessa benesse, pela mesma razão da essencialidade dos produtos na vida dos cidadãos. E também o peixe… e alguma carne. E os livros… e o teatro!… Mas… a religião?!!… Porquê isentá-la de impostos? Qual a necessidade de uma oração ou de uma tomada de hóstia? Quem necessita de satisfazer tal vício espiritual pode fazê-lo em casa, a sós, sem necessitar das “salas de chuto” que são as igrejas, mais as salas de reunião das seitas! Estas, deveriam pagar imposto por serem um luxo para quem entende alegrar a vida alimentando o vício da oração em conjunto, no êxtase colectivo.

A notícia informa que a razão desta dádiva fiscal se prende com a equiparação das empresas religiosas a Organizações Não Governamentais (ONG) e Fundações, e ainda porque essas religiões têm acordos de colaboração com o Estado. A isenção do IMI em Espanha não só contempla os templos de culto, mas também abrange a residência dos sacerdotes. As propriedades destas associações religiosas são calculadas pelo governo em 148 bens imóveis da Igreja Ortodoxa; 23 da Comunidade Budista e 785 das Testemunhas de Jeová. Os Mórmons têm uma propriedade em Madrid e mais 123 lugares de culto espalhados por todo o território espanhol. 

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico) 

 OV

Imagem de Heinrich Wullhorst por Pixabay
8 de Dezembro, 2023 Onofre Varela

A visitação

A “Senhora da Visitação” é uma devoção criada pelos primeiros frades franciscanos que se inspiraram no Novo Testamento.”

Talvez para espanto da maioria dos meus leitores, digo-vos que sou um ateu que ouve missas. Nos funerais de familiares e amigos, assisto sempre à cerimónia religiosa e tenho toda a atenção no discurso do padre, o qual, demasiadas vezes, me leva a tomar notas para depois, já em casa, me inteirar da profundidade ou da superficialidade do discurso sacerdotal para, só então, poder comentá-lo, criticá-lo ou elogiá-lo.

Hoje (Domingo, dia 11 de Junho) ao acordar tive o gesto do costume: liguei o rádio. A Antena 1 transmitia a costumeira missa dominical a escassos dois minutos do seu final, pelo que não ouvi o discurso total que estava a ser transmitido. Porém deu para me aperceber de que se fazia referência à “Senhora da Visitação” numa alegoria (pelo que entendi) à esperada boa recepção aos jovens e menos jovens que peregrinarão a foz do rio Trancão no Encontro Mundial da Juventude que se avizinha. A ideia provocou-me um sorriso (o que é sempre bom experimentar ao acordar) e obrigou-me à investigação para me documentar.

A “Senhora da Visitação” é uma devoção criada pelos primeiros frades franciscanos que se inspiraram no Novo Testamento (Lucas: 1;39-56) onde se conta o anúncio do anjo Gabriel a Maria, informando-a de que estava grávida de Jesus. Mas o anjo não se ficou por aí: à boa maneira das vizinhas que não têm travão na língua, também lhe disse que a sua prima Isabel, já velha para engravidar, afinal também estava “de esperanças” havia já seis meses, por um milagre de Deus!… Esta gravidez resultaria no nascimento de João, que haveria de ser “o Baptista”, primo de Jesus em segundo grau e que o baptizaria nas águas do rio Jordão.

Perante este anúncio, Maria não se preocupou com mais nada, se não com a vontade de estar com a sua prima e comunicar-lhe que ela estava grávida. Por isso se apressou a visitá-la, antes mesmo de dizer a José, seu marido já velho e sem vigor sexual, que iria ser pai… o que é, no mínimo, estranho! Como se sabe José ficou registado na história religiosa cristã como pai adoptivo de Jesus Cristo, o qual passou a ter dois pais: o adoptivo (José) e o biológico (Deus)… mas aqui o termo “biológico” não é bem empregue por não se entender uma “gravidez divina” em termos de biologia!

Acontece que a sua prima Isabel vivia em Aim Karim, localidade dos arredores de Jerusalém, e Maria estava em Nazaré. A distância entre as duas localidades é aproximada à do Porto a Coimbra, então sem transportes públicos nem estradas bem pavimentadas… o que não impediu Maria de vencer a distância (em burro ou a pé) e abraçar a prima, valendo-lhe a categoria franciscana de “Senhora da Visitação”.

Não sei se também aproveitaram o encontro para coscuvilharem sobre as suas estranhas gravidezes sem terem experimentado o delicioso prazer sexual… disso não há registo… mas também não interessa para esta prosa.

Quando Maria disse à sua prima que ela (a prima) estava grávida de seis meses (como se ela não soubesse!) Lucas escreveu que “a criança estremeceu no seu seio e Isabel ficou cheia do Espírito Santo”… o que é um espanto!…

Retirado o folclore religioso desta “visitação”, podemos encontrar nesta estória neo-testamentária um exemplo para se fazer moralidade actual, e que pode ser este: uma visita pessoal, com um abraço, um sorriso e o calor do contacto, é bem mais importante do que um frio telefonema. Um telemóvel não substitui um encontro com olhos nos olhos e o aperto de um abraço.

Se esta é a lição a retirar desta parte do Evangelho, não duvido que é uma mensagem positiva que sublinha o valor da palavra “visitação”… mas já duvido do seu entendimento pela maioria dos religiosos que assistem a missas, que batem no peito e ingerem hóstias, fazendo-o por uma habituação cultural-religiosa sem qualquer conotação com a vida real e prática, num total “marimbanço” para os problemas dos outros!…

Mas isto digo eu, que sou um má língua… e só espero estar enganado, que a amizade franca e sadia predomine entre as comunidades religiosas em perfeita comunhão com os outros… incluindo na figura dos “outros”, os não religiosos do mesmo clube!

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

OV

Imagem de Dorothée QUENNESSON por Pixabay
2 de Dezembro, 2023 Eva Monteiro

Da Infância à Apostasia

Nenhuma criança devia ser sujeita a qualquer tipo de ato religioso, já que carece da maturidade e discernimento para julgar por si mesma se dele quer tomar parte. Por outro lado, suspeito que é precisamente esse o objetivo. Começar cedo a combater o poder construtivo da indagação e da exploração na mente das crianças.

Há alguns dias fiz o meu pedido de apostasia, sobretudo porque não partilho da fé dos meus pais. Parece-me contudo, que a ausência de fé não é uma falha, assim como ter fé não é uma virtude. Não há nenhuma falha em recusar ideias dogmáticas sem fundamento, ou provas tangíveis. Não há nada de virtuoso em acreditar numa divindade que, sendo omnisciente, omnipotente e o expoente máximo da bondade, pudesse ter criado um mundo de infindável sofrimento. E sem que esse masoquismo lhe chegasse, esperar que nos vergássemos em adoração constante. Não há nada de virtuoso em apoiar instituições que deliberadamente passaram toda a sua existência a tentar atrasar o progresso da humanidade, opor-se à ciência, à liberdade e à decência do senso comum. Não há nada de virtuoso em acreditar que, nascendo numa aleatória localização geográfica, qualquer que seja a fé ali praticada, é convenientemente a única religião verdadeira e capaz de conceder salvação.

Não há nada de virtuoso em desperdiçar a única vida que temos, na expectativa de uma eternidade a adorar um ditador celestial. Ainda menos virtuoso é continuar a insistir nas supostas verdades da bíblia quando a Teoria da Evolução as deita por terra, a História as contradiz e a coerência as nega. E menos virtuoso ainda é atribuir a deus milagres nas pequenas coisas boas da vida e ignorar cataclismos, genocídios e atrocidades inimagináveis, votando-os ao misterioso plano divino. Isto, quando não é atribuído a um castigo pelos pecados da Humanidade, como se coisas como as placas tectónicas tivessem alvos a abater. Assim como dizer que se tem uma relação pessoal com essa insondável entidade que desaparece sempre que é necessária ou desejável, não é virtude, é delírio.

Sou ateia. Orgulho-me de o dizer publicamente e de não me esconder atrás da ridícula denominação “católica não praticante”. Fazê-lo apenas engrossa os falsos números que continuam a justificar uma Concordata que impede a plena laicidade deste país. Não acredito na existência do deus da bíblia, da tora, do corão ou de qualquer outro livro de ficção. Tal como não acredito em nenhuma divindade, nem em fadas, duendes e unicórnios. Aceitemos com honestidade intelectual que o que pode ser afirmado sem provas também pode ser rejeitado sem provas. Sou ateia. Afirmo-me absolutamente contra o poderio e compadrio de uma instituição religiosa que continua a sufocar uma sociedade que não obtém qualquer benefício na infantilidade de um amigo imaginário.

Sou ateia, nasci ateia. Fui batizada num momento em que não podia opor-me ou compreender o abuso a que estava a ser sujeita, ainda que os meus pais o tivessem feito de boa-fé, por tradição ou pressão de pares. Fui forçada a frequentar a catequese, numa das piores experiências de que tenho memória da minha infância. Fui forçada a assistir a missas que nunca me disseram nada, porque em nada podem acrescentar a um ser humano racional.

Fui forçada a ir confessar pecados que não tinha nem podia ter. Eram, afinal, tão imaginários quanto a autoridade divina de que se investia o padre, na primeira e última vez que coloquei os pés num confessionário. O mesmo que me afirmou que eu tinha que ter pecados e que me pressionou, naquela tenra idade, a não sair do confessionário sem que confessasse alguns, questionando-me sobre eventuais pensamentos contra a minha família. Afinal, era preciso vergar-me desde cedo à doutrina da culpa e da contrição, à perseguição do pensamento, ao alerta de que um deus cruel e desocupado me vigiava até no pensamento. Fui repetir umas avés-maria e uns pai-nossos como instruída, sem qualquer contrição, sem qualquer pecado. Fi-lo nas escadas da igreja da minha paróquia, juntamente com outras crianças que também não tinham idade para compreender a noção de pecado, quanto mais para o ter. O único pecado presente, e por pecado quero dizer falha moral, foi que aquilo nos tivesse sido solicitado. Pairava sobre nós a pressão de também ser pecado desobedecer ao Sr. Padre.

E assim fui obrigada a fazer uma “Primeira Comunhão” sem que tivesse idade para entender o que estava a fazer, de que comunhão estava a tomar parte. Para mim, era apenas um dia em que seria obrigada a usar um vestido branco, ir em fila comer uma hóstia que, diziam-me, não podia mastigar porque se tratava do corpo de Cristo. Sabia lá eu o que significava a transubstanciação ou quão ridícula e falsa é esta noção de canibalismo divino. Mas aterrorizava-me a noção de poder acidentalmente morder a carne de deus, principalmente quando se colou ao meu céu da boca, e eu achei com igual terror que teria de espetar um dedo numa parte desconhecida do corpo de Cristo para o desalojar.

Nenhuma criança devia ser sujeita a qualquer tipo de ato religioso, já que carece da maturidade e discernimento para julgar por si mesma se dele quer tomar parte. Por outro lado, suspeito que é precisamente esse o objetivo. Começar cedo a combater o poder construtivo da indagação e da exploração na mente das crianças. E assim, serão bons cristãos, bons muçulmanos, bons judeus, bons seja o que for. Porque nem lhes passará pela cabeça questionar. Sou ateia, nascemos todos ateus. Tentam retirar-nos essa virtude de questionar o mundo e buscar a verdade, convencendo-nos de que esta nos pode ser oferecida pelos senhores de paramentos mágicos num altar.

A minha experiência nesta instituição foi de opressão e culpabilização, de indoutrinação. Outros tiveram piores experiências ainda, e já não é possível à Igreja Católica esconder as suas muitas falhas, nem as disfarçar com as suas obras aparentemente altruístas. Por todos aqueles que foram abusados, psicológica, física, financeira e sexualmente, nenhum ateu de postura humanista pode aceitar ter o seu nome associado a esta instituição.

20 de Setembro, 2023 Onofre Varela

Sobre a morte de deus

Texto de Onofre Varela, previamente publicado na imprensa escrita.

Quando se ouve vaticinar a “morte de Deus” aventada por Nietzsche, pensamos numa revolução que nasce na madrugada de um dia, e que ao raiar do Sol… Deus já não existe. Mas não é nada disso!…

A “morte de Deus” não é mais do que o abandono do conceito deifico por uma maioria que faz o caminho da sua descrença naturalmente e sem drama.

Na verdade, no nosso tempo, Deus (enquanto ideia de um ser criador omnipotente, omnipresente e omnisciente) já está a morrer… e tanto mais morrerá quanto mais alargada for a consciência das pessoas sobre a real dimensão imaginária desse milenar conceito de Deus que formatou sociedades, mas que não existe veramente fora do pensamento de quem crê.

Enquanto essa consciência não se generalizar (se, quiçá, algum dia se generalizar… e eu acredito que sim pelo facto de o Homem ser a última experiência da Natureza; somos ainda muito primitivos; cheiramos a pintado de fresco… e lá chegaremos quando atingirmos a “idade adulta”) a maioria de nós garante que a divindade é real, mercê da educação familiar e social que recebeu desde o berço. Em consequência, deposita mais confiança nos sacerdotes, bispos e pastores de igrejas e seitas malvadas… que são tão falsos quão falsos são os pregões dos políticos quando nos prometem a felicidade se receberem votos suficientes para atingirem o poder.

Na verdade a ideia de Deus emparceira com a Política no que respeita ao alimentar de desejos e paixões, e ao criar guetos e inimizades (mas também amizades… se francas ou falsas… isso já é outra conversa), e no extremo leva a guerras que a História regista e a actualidade assiste. Guerras declaradas com a invasão de países independentes, ou acções terroristas “em nome de Deus”, tão graves e mortíferas como muitas das acções bélicas decretadas por Parlamentos, generais ambiciosos e presidentes que sonham ser czares.

E também serve para manter a classe clerical e os gestores de seitas – que se pretendem defensores da moral instalada – em níveis económicos e sociais elevados… mas sem respostas realistas para o engrandecimento da sociedade onde se instalam… em vez disso prometem benefícios celestes baseando a sua moral em mitologias que são, afinal, a ferramenta do seu trabalho, de onde retiram o sustento… embora também abracem a realidade material recebendo subsídios governamentais para explorarem ramos sociais como o ensino, a saúde, lares da terceira idade e infantários. No extremo, organizações desta índole (a maior das quais, entre nós, é a Igreja Católica) transformaram a caridade numa indústria social.

A indústria da caridade é indigna numa sociedade verdadeiramente democrática e de cariz socialista que se interesse pelo bem-estar do seu Povo. Enquanto houver um sem-abrigo e uma família sem pão, a Democracia (e toda a prática política) é uma fraude. A indústria da caridade ajuda a alimentar essa fraude ao substituir a solução definitiva, que pertence aos governos, por remendos sazonais e “sopa dos pobres”, que nada resolvem em definitivo e só adiam a morte anunciada a quem tem fome, lhe falta abrigo e meios de subsistência dignos.

Neste contexto político e social (que, infelizmente, cada vez mais, faz o nosso dia-a-dia) a crença em Deus é positiva porque acaba por ser uma tábua de salvação das consciências religiosas, garantindo algum conforto espiritual.

Quero acreditar que quando atingirmos a “maioridade” enquanto “Homo sapiens-sapiens”, a perfeição comportamental estará mais perto… e a razão será de Nietzsche no vaticínio da definitiva “morte de Deus”.

Mas parece-me que isto também é fé… embora laica!…

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

OV

Por Friedrich Hermann Hartmann – Domínio público
18 de Setembro, 2023 Onofre Varela

“No princípio era o verbo”

Texto de Onofre Varela, previamente publicado na imprensa escrita.

O termo Verbo é usado em Religião para designar o autor do princípio dos princípios, e na sua essência é o próprio Deus. Quem quer saber mais do que isto não o consegue nos registos religiosos; aí, o que encontra é pura fé: “Antes de qualquer coisa existir, Deus já existia. Foi ele o criador de tudo a partir da sua palavra. Deus falou e tudo se formou. Do nada, nada surge, mas da palavra de Deus tudo foi formado. O Verbo é a palavra, e a palavra é Deus. A palavra de Deus transformou-se em homem e esse homem é Jesus”.

Para um ateu, “saber isto”… é saber nada! (e para o religioso, também… embora ele imagine que não!). Quem mergulha na fé como numa piscina de sapiência, não sente necessidade de saber… a fé basta-lhe. Não tenho nada contra as vontades religiosas e só espero que quem assim sente seja feliz no entendimento dos seus conceitos… e não cometa actos contrários à ética universal, como fazem os religiosos fundamentalistas islâmicos e outros extremistas no campo da política.

Mas quem quiser saber realmente, tem de escolher outros caminhos que não os da fé. Pela fé nada se sabe. O “saber religioso” usa como garantia o selo-da-fé sem explicar os processos usados na comunicação e na criação. Em nome da fé valoriza-se o mito e relega-se a História (e toda a Ciência) para planos de menor, ou nula, importância.

Dir-me-ão que a fé pertence a outra dimensão que não à da Razão nem à da Ciência. Claro que sim. Sei disso. Os credos religiosos são uma questão ideológica, e os livros de fé derramam ideologia e não História nem Ciência. E também sei que a propaganda feita à fé para conquistar crentes, atropela e nega princípios científicos, mesmo os mais básicos. Logo, é desonesta na sua essência e à partida, por não considerar o avanço do conhecimento acontecido depois dos registos de fé que datam da Idade do Ferro e que ainda são usados como base de uma doutrina comportamental alegadamente ditada por um hipotético deus.

A fé inibe a vontade de interrogar e de investigar perante “explicações” ideológicas divorciadas de todas as explicações científicas, e algumas delas são, até, totalmente carentes de nexo. No campo racional não há espaço para discursos de pura fé debitados como realidade.

A Ciência, como meio de procura de explicações, é imbatível por qualquer ideologia política ou teológica, e quem rege a sua vida por dogmas religiosos, não tem uma conduta moral e cívica com melhor qualidade do que o ateu que se guia por uma sã decência laica. Aliás, no campo da decência, os conceitos comportamentais dos ateus até poderão ter lugar no pódio mais alto.

Os crentes, mais do que crentes, são crédulos… tomam por verdade as “escrituras sagradas” sem se preocuparem em saber a verdadeira origem e intenção primeira dos textos que lhes merecem crença em vez de compreensão. Há grupos de crentes (principalmente nos EUA, onde tudo é em grande… tanto a sapiência como a ignorância) apostados na “vitória da Bíblia sobre o conhecimento científico”, afirmando o Génesis contra a Evolução. A Ciência estuda e investiga (e também se engana), e só afirma com provas aferidas e experimentadas. Aqueles que a atacam fazem-no com base em comportamentos culturais que são outra coisa… nada têm a ver com conhecimento científico. Ao contrário da Religião, que “sabe que tudo sabe”, a Ciência apenas sabe que hoje sabe mais do que sabia ontem e espera saber, amanhã, mais do que sabe hoje… não sabendo se o saberá!

Ao contrário, a Religião afirma saber hoje o mesmo que garantia saber há cerca de três mil anos… e diz não haver nada mais para se saber e que a verdade lhe pertence… sendo que a Verdade é a “palavra de Deus” (grafada com maiúscula porque sagrada).

Perante conceitos religiosos há quem se coíba de pensar para além daquilo que diz o sacerdote ou o guru da seita, aceitando quaisquer palavras dúbias (ou explicitamente mentirosas) por verdade universal e absoluta, dispensando o seu cérebro do “penoso acto de pensar”!…

Parece ser esta a principal característica do crente típico… e quem dispensa o cérebro (não raciocinando para além dos conceitos religiosos) tem mais fé do que aquele que o usa, raciocina e quer saber.

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

OV

Imagem de beate bachmann por Pixabay
15 de Setembro, 2023 Onofre Varela

COMO SERÁ O FUTURO?

Texto de Onofre Varela, previamente publicado na imprensa escrita.

Quando entramos no ano 2000, por ser uma data redonda e emblemática para os vaticinadores do futuro e da desgraça, ouvi e li que “este século será religioso, ou não será”. A frase é ambígua, à boa maneira das coisas que às Religiões pertencem. Desde logo importa saber o que se quer dizer com o termo “religioso”. Pode-se ser religioso sem ter fé numa divindade. E depois… o “não será”, significa o quê? Que o século pode não ser religioso?… Ou que não será século?!…

Nas conjunturas sociais graves, é comum os povos mais vitimados recorrerem ao guarda-chuva da fé para apaziguarem o espírito. É nesse sentido que a rotineira “volta a Deus” acaba por aparecer como tábua de salvação, sob uma forma ideológica que gera nos indivíduos mais dados à fé do que ao entendimento das realidades sociais, económicas e políticas, algum sentimento de segurança e consolo.

É uma característica do pensamento crente… de quem “vive por procuração”, enquanto mente cativa de uma entidade divina. Nesse sentido concordo com o escritor espanhol Gonzalo Puente Ojea, quando afirma ser “o ateísmo a situação intelectual mais coerente com a actualidade, porque recusa as atitudes de fidelidade a um deus que viola as exigências de discernimento da consciência, impedindo que o ser humano tome posse de si mesmo”. (Ateísmo y Religiosidad. Reflexiones sobre un debate. Editora Siglo Veintiuno. Madrid, 2001).

Os mesmos vaticinadores da desgraça também já afirmaram que o Islão irá dominar o mundo; que os árabes refugiados das guerras do Médio Oriente e da miséria dos países islâmicos africanos, invadiriam a Europa miscigenando-se connosco, e o futuro do mundo será islâmico (esperem aí…vou ali dar uma gargalhada e já volto! [não alinho com radicalismos, sejam rácicos ou outros]).

Eu não tenho nenhuma ideia do que será o futuro!… E os vaticinadores da desgraça, também não. Cada um pensa um futuro à sua medida, e por aí eu gosto de pensar que a Humanidade trilha o caminho da perfeição possível (mesmo tropeçando nas situações mais horríveis, como o terrorismo, a guerra e a sede de enriquecimento pela indústria do armamento e da agressão ao ambiente) e que será cada vez menos seguidora de religiões… mais agnóstica ou ateia.

Quando afirmo este gosto parece que estou a colocar-me ao nível dos religiosos e a assumir a minha costela de crente num futuro positivo. Porém parece-me ser um assumir de uma característica possível, porque está alicerçada na História. Os seres humanos de outrora eram bem mais religiosos do que os actuais… no Egipto faraónico os líderes políticos também assumiam a liderança religiosa. Depois da Revolução Francesa mudou-se o estado de graça da Religião e do paradigma das sociedades. Hoje as repúblicas e as monarquias europeias são laicas.

Comparativamente com a idade da Civilização, iniciada na Suméria cerca do ano 3000 aC, (o que lhe dá 5000 anos de existência), a Revolução Francesa (14 de Julho de 1789) aconteceu na semana passada; ainda cheira a pintado de fresco!… A Humanidade ainda terá de esperar tanto tempo quanto aquele que decorreu entre Ramsés II (tempo de Moisés) e a tomada da Bastilha, para que o apuro do pensamento prescinda da ideia de Deus e as igrejas possam encerrar por falta de clientela? Ou reciclarem-se em algo semelhante a prestação de consultas de psicologia?

Penso que o tempo em falta para se atingir tal apuro não será tão dilatado, porque a aprendizagem já conseguida acelerará o processo, iluminando consciências muito mais cedo, numa lógica de um futuro com dimensão humana mais dada ao raciocínio, abandonando o conceito de Deus… e não só; também abandonando conflitos armados que serão substituídos pela palavra na resolução de problemas.

Mas… esperar um futuro assim, tão positivo… também pode configurar um sentimento de fé!…

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

OV 

13 de Setembro, 2023 Onofre Varela

O Pirilau do Cutileiro

Texto de Onofre Varela, previamente publicado na imprensa escrita.

Ultimamente temos assistido a actos censórios exercidos sobre obras de arte, desde caricaturas e cartunes até instalações, passando por romances e banda desenhada. Uma “onda de pureza” parece estar a varrer as mentes perversas dos censores, travestidas de pudicas.

Quem censura obras artísticas e literárias, não sabe… mas devia saber… que os censores são, antes de mais, umas bestas. Só quando se atinge o estatuto de besta, se pode ser censor!

Lembro que em Janeiro de 2016 as autoridades políticas italianas decidiram tapar uma série de estátuas de nus, naquele que é considerado o complexo museológico mais antigo – os Museus Capitolinos, em Roma – por ocasião da visita do presidente do Irão Hassan Rouhani, para que os púdicos olhos do ditador desrespeitador das liberdades individuais e das mulheres do seu país, não fossem magoados perante a beleza de um nu artístico produzido na Época Clássica!

Se calhar as estatuetas de deusas-mãe pré-históricas (como a Vénus de Willendorf, do Paleolítico Superior) também não podem ser vistas por tal gente que nasceu com um defeito genético: os intestinos no crânio!

Esta decisão não foi mais do que um desavergonhado acto de ajoelhar da cultura ocidental, perante a cultura islâmica na figura de um miserável ditador, originando uma série de críticas ao governo italiano acusado de “excesso de zelo” (termo bonito para designar “besteira”) perante a distinta cultura do Irão. Obras como: “Arco” (de Lísipo, século IV a.C) e uma “Leda e o Cisne” (360 a.C.) foram revestidas com painéis para encobrir a nudez das figuras. Outras obras foram removidas do local onde se encontravam.

Quase tanto esteve para suceder à estátua equestre do imperador Marco Aurélio, neste caso devido à genitália do equídeo (parece que no Islão os cavalos nascem capados. A tomatada só a têm homens muito machos e desrespeitadores das mulheres). A estátua está colocada na denominada Sala Esedra, onde decorreu uma sessão com a presença de Hassan Rouhani e de Matteo Renzi, o primeiro-ministro italiano. E se mais obras não tiveram de ser tapadas, foi porque o dirigente iraniano só teve de percorrer um pequeno sector do museu até chegar à sala onde exibiria a sua ridícula figura a merecer um tapume.

O melhor seria terem fornecido umas palas de cavalo ao ilustre merdoso islâmico, para ele colocar na focinheira e não ver as obras de Arte que, desde a velha Grécia, são símbolo da liberdade de criação artística do ocidente, cuja liberdade ele desrespeita e despreza.

Passando para os dias de hoje, e na minha terra, parece-me que palas idênticas merecem usar os responsáveis daquela coisa religiosa tomada por coisa muito séria e que dá pelo nome “Jornadas Mundiais da Juventude” (a Festa do Avante da Igreja Católica) que até vai merecer visita papal. Um dos altares das cerimónias litúrgicas a terem lugar na capital do reino, situa-se no alto do Parque Eduardo VII em frente da escultura de João Cutileiro que ali foi instalada em 1997; um monumento fálico que simboliza a coragem dos capitães de Abril para derrubarem a ditadura.

A escultura vai ser retirada (afinal… a ditadura não foi totalmente derrubada!…) para não conspurcar as vistinhas dos assistentes das missinhas ali celebradas, tendo, em pano de fundo, um pirête a fazer concorrência à cruz.

O presidente da Câmara, Carlos Moedas, afirmou que a retirada do monumento nada tem de censório (admirava-me se dissesse que tinha!…) e que acontece só para se proceder à restauração da obra, que será recolocada no mesmo lugar logo que os olhos pudicos dos religiosos se ausentem de Lisboa após as jornadas.

Bem sei que há quem não goste daquele monumento fálico… mas ele não está ali para ser degustado!… Quem não gosta que não o chupe!…

Esta conversa do autarca lisboeta cheira-me a desculpa esfarrapada como a que foi usada perante as sensibilidades melindrosas de um monarca sem vergonha, e agora de uma classe clerical que, em nome de Jesus, se afirma detentora de uma pureza e de uma moralidade imaculadas, mas que no seu seio alberga pedófilos.

Perante estes casos eu fico furioso e atónito!… Ou o mundo está a ficar maluco com todos estes sintomas de mau funcionamento da mioleira destes (ir)responsáveis políticos e culturais… ou então o maluco serei eu por considerar Hassan Rouhani um personagem asqueroso quando há quem lhe dê ouvidos e o aceite como gente decente… e ao deparar-me, agora, com idêntico figurino censório cá na minha parvónia!…

Os desmiolados sensores actuais ainda serão capazes de fazer o mesmo que fez Salazar e censurar “Os Lusíadas”… porque a “Ilha dos Amores” pode ser pornográfica! E em consequência provavelmente ditarão a condenação à morte do Cupido por ter sido o instrumento da “pouca vergonhice”.

No extremo, o Vaticano terá de reescrever a Bíblia… já que umas filhas que embebedam o pai para se deitarem com ele e engravidarem (Génesis: 19; 30-38)… provavelmente não será uma atitude muito católica!…

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

OV

Por Francisco Santos (User:xuaxo) – Obra do próprio, CC BY-SA 3.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=2009534