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Categoria: Religiões

6 de Fevereiro, 2024 Eva Monteiro

Os milagres Segundo a Ciência

Luigi Garlaschelli (Itália)*

Fenómenos paranormais, mistérios e milagres

Os fenómenos paranormais violam as leis da natureza, mas como cientistas curiosos gostamos de investigar se os factos paranormais realmente existem e se existem provas convincentes dos mesmos. (A resposta, até agora, é “NÃO”).
Um famoso “mágico” e escapista americano, James Randi, ofereceu, durante cerca de 30 anos, um milhão de dólares para quem conseguisse repetir o paranormal sob controlo. Ninguém conseguiu conquistar essa verba.
Os fenómenos paranormais aparecem com menos frequência, quanto mais são  investigados. Eis aqui, como exemplo, alguns mistérios (nem todos paranormais) com os quais me ocupei:
– Aprendi os segredos dos faquires (e eu próprio me tornei faquir): posso deitar-me numa cama com “unhas eriçadas”, expelir fogo, comer vidro, parar os batimentos cardíacos, etc.
– Cacei luzes perdidas num cemitério.
– Tratei da espada cravada na pedra! (E até consegui sacá-la)
– Examinei vedores, pessoas que afirmam poder encontrar uma fonte de água subterrânea com um pau, mas não foram capazes de detetar água a correr num cano.
– Testei, por meio de uma experiência, se a homeopatia seria eficaz em galinhas (e não é).
– Inquiri sobre as estradas mágicas onde os veículos sobem na descida (mas isso é apenas uma ilusão de ótica).

Mas os milagres também são fenómenos paranormais, embora ocorram na esfera religiosa. Esclareço que nós, cientistas, não estamos interessados na vertente da crença, mas no exame dos fenómenos. Em Itália, temos muitos milagres e explorei alguns deles.

Caravaggio «pictor praestantissimus», 2014

Sangue milagroso


O mistério mais famoso que investiguei é o chamado milagre do sangue de São Januário (San Gennaro). Esse “milagre” acontece três vezes por ano, na catedral de Nápoles, quando o sangue numa ampola se liquefaz, misteriosamente. É normal que o sangue coagule, mas não é normal acontecer que ele se liquefaça de novo e depois volte a coagular, novamente e novamente. Reproduzimos (ou imitamos) esse milagre por um método químico. Criámos um gel, ou seja, uma gelatina, feita de cloreto férrico e carbonato de cálcio. Este gel “tixotrópico” pode ser facilmente liquefeito com batidas suaves e depois, em repouso, solidifica novamente. Durante a cerimónia típica de liquefacção do sangue, o acto pelo qual o abade verifica se a liquefacção ocorreu faz com que o relicário portátil seja virado várias vezes, proporcionando assim a agitação necessária.
Outro sangue milagroso é o de São Lourenço (San Lorenzo), na cidade de Amaseno (a sul de Roma), que se liquefaz todos os anos, no dia 10 de agosto. Tive oportunidade de o observar bem: trata-se de uma substância normalmente sólida, mas que derrete quando a temperatura passa dos 30 graus, como acontece no verão. Na minha reprodução usei óleo de coco e corante vermelho.
A composição química da relíquia napolitana só poderá ser identificada pela análise do conteudo da ampola, porém tal análise é proibida pela Igreja. No entanto, bastaria apenas testar se o conteúdo se liquefaz batendo ou aumentando a temperatura.

As curas de Lurdes


Falemos agora das curas milagrosas de Lurdes (Lourdes, em francês), que deveriam ser as mais fiáveis, pois foram examinadas por três comissões, duas médicas e uma eclesiástica. Desde 1848, foram reconhecidos 70 milagres oficiais. Mas devemos ter em conta os seguintes factos: 
– Nos primeiros 50 anos (1848 -1909) ocorreram 38 curas. Entre 1910 e 1959: 25. De 1960 a 2009: 4. Assim, o número de milagres diminuiu constantemente.
– Nos primeiros 50 anos não existiam radiografias nem análises laboratoriais reais, portanto os diagnósticos das doenças eram muito incertos.
– As percentagens de curas “inexplicáveis” em Lurdes são iguais às que ocorrem nos hospitais, mas estas são menos visíveis.
– As curas nunca são – como seria necessário para um milagre – imediatas, perfeitas e completamente sem tratamento.
– Muitas vezes os documentos não são suficientes e os exames médicos ou diagnósticos são questionáveis (mesmo recentemente, como no caso da italiana Delizia Cirolli).
– Na maioria dos casos, tratava-se de doenças funcionais e não orgânicas (auto-sugestão e placebo).
– Muitas vezes, se confia demais nas testemunhas.
– Geralmente leva muito tempo até que o milagre seja reconhecido.
– É muito difícil – ou mesmo impossível – para quem quer fazer investigação obter fichas clínicas completas.
– O ex-diretor da Comissão Médica de Lurdes, Patrick Theillier, afirmou: “Uma pessoa doente só pode recuperar de uma doença que seja suscetível de desaparecer. O milagre não violenta a Natureza. Nunca aconteceu que uma criança com síndrome de Down fosse curada em Lurdes. Concluindo, o que se designa de milagre pode, em termos médicos, ser chamado de desaparecimento espontâneo dos sintomas.”

O Sudário de Turim


O Sudário de Turim é um pano de linho mundialmente famoso, atualmente guardado na catedral de Turim, e que os católicos tradicionalmente consideram o pano no qual o cadáver de Jesus Cristo foi amortalhado. A autenticidade da relíquia é contestada. Segundo alguns, foi realmente a mortalha de Jesus. De acordo com outros, é uma falsificação medieval. A Igreja (teoricamente) mantém uma posição neutra a este respeito e deixa os cientistas livres para decidir.
O Sudário é um lençol de linho com dimensões de 1,41 x 1,13 metros. Traz, nos dois lados, uma imagem escura de um homem torturado. (Vestígios de queimaduras também marcavam a imagem). Há vários indícios de que o sudário não é autêntico:
– As verdadeiras mortalhas palestinianas do século I DC eram totalmente diferentes. Naquela época os cadáveres eram amarrados e usavam-se vários panos. Além disso, os panos eram feitos de materiais diversos e confecionados com uma forma de tecelagem diferente.
– Para fabricar o Sudário de Turim foi utilizado um tipo de tecido que não existia até à Idade Média.
– O Sudário só apareceu no ano de 1355, numa pequena capela em França. Imediatamente após esse aparecimento, foi exibido para atrair os peregrinos e apresentado como verdadeiro. Por causa disso, dois bispos proibiram a sua exposição. (Existem documentos e mesmo bulas do papa da época, relacionados com essa proibição). Assim, mesmo a Igreja durante vários séculos não o considerou autêntico.
– Em 1988, três dos laboratórios mais experientes do mundo dataram-no com carbono-14. Resultado: é do século XIV!
– Um corpo humano real não deixa traços como os do Sudário: o traço é deformado e não matizado, mas é limpo.

O Sudário foi estudado, em 1978, e as características da imagem humana foram especificadas. Assim:
– A imagem é clara, matizada e não distorcida
– A imagem não se deve ao pigmento (ou seja, a grânulos sólidos), mas sim às fibras amareladas devido à decomposição da celulose (térmica ou química). O amarelecimento existe apenas na parte superficial dos fios de linho. No entanto, foram encontrados microvestígios de ocre (= terra argilosa, geralmente pulverulenta, de amarelada a avermelhada, usada como pigmento para tintas)
– A imagem mostra “negatividade”: descoberta graças à primeira fotografia, em 1898, na altura da revelação das placas fotográficas, parecia uma imagem real, porque as partes proeminentes do rosto se tornam brilhantes e as menos proeminentes, escuras.
– A imagem não fluoresce.
– Os vestígios de sangue não são matizados como a imagem corporal, mas são nítidos.

Todas essas características são consideradas inexplicáveis e, como tal, não criáveis por um artista. “O sudário é um objeto “impossível”, portanto um milagre”. Será possível? Eis as minhas hipóteses para o testar:
– A imagem original deveria ser mais visível, no início. Um artista não criaria uma imagem muito fraca.
– O Sudário foi criado esticando um pano sobre um corpo e esfregando-o com ocre seco. – Para a face foi utilizado um baixo-relevo para evitar deformações.
– Marcas de sangue e chicote foram pintadas posteriormente.
– Com o passar dos anos, o pigmento degradou-se.
– As impurezas contidas no pigmento provocaram o amarelecimento superficial das fibras.
– Este processo deve produzir automaticamente um pseudonegativo, uma imagem superficial, rasa e fraca, sem distorção e sem pigmento.
– Explicam-se os microvestígios de ocre remanescente, a falta de deformação e as características das manchas de sangue.

Os meus testes práticos foram, portanto, os seguintes:
– Esfregar, sobre um corpo real, o ocre, contendo vestígios de ácido (para simular impurezas de pigmento).
– Usar um baixo-relevo para o rosto.
– Adicionar marcas de chicote e sangue com um pincel.
– Meter no forno, a 125 graus e durante 2 horas, para simular antiguidade, com a minha “Máquina de fazer Sudários”!
– Lavar o pano para retirar o pigmento.
– Adicionar queimados, vestígios de sangue, etc.

O resultado apresenta uma imagem matizada, vestígios de sangue não matizados, pseudo-negatividade, imagem superficial devido ao amarelecimento das partes superficiais dos fios, etc. Portanto, não é verdade que o Sudário tenha propriedades que não podem ser reproduzidas!

Mais maravilhas


Na religião católica há casos de hóstias que sangram, como o milagre de Bolsena (1263). No entanto, muitos casos semelhantes também ocorreram em pão, bolos, etc. geralmente no verão. Por exemplo:
– Sangramento de hóstias em Paris (verão de 1290); Bruxelas (junho de 1369 e julho de 1379); Wilsnack, Alemanha (agosto de 1383); Sternberg, Alemanha (julho de 1492); Berlim (verão de 1510);
– Sangue num bolo, Stennwitz, Alemanha (julho de 1693);
– Sangue no pão, Chalons, França (setembro de 1792);
– Sangue na polenta (comida de milho), Legnaro, Itália (agosto de 1819).
Somente em 1819 se entendeu que se tratava de um microrganismo (Serratia marcescens) que cresce em alimentos ricos em amido, se o clima for quente e húmido, e que produz um pigmento vermelho. Assim nasceu a microbiologia. O milagre é facilmente reproduzido se se colocar algumas gotas da cultura Serratia numa fatia de pão.

Estátuas a chorar (e a beber)


Como pode uma estátua chorar? Às vezes há explicações naturais: a humidade condensa, a cola para os olhos derrete, etc. Por exemplo, numa estátua do Padre Pio, a água condensou-se por dentro e pingou de uma fenda (do cotovelo!). Por vezes ocorre trapaça. Houve um caso na Sicília de uma estátua a transpirar óleo. A polícia escondeu uma câmara e foi observada uma mulherzinha com uma garrafinha a derramar óleo na testa da estátua. Nestes casos, bastaria fechar a estátua num recipiente hermético, com câmaras e boa iluminação, para ver se ela realmente continuava a chorar.
Um caso famoso foi o de Civitavecchia, perto de Roma (1995): uma estatueta de Nossa Senhora parecia chorar lágrimas de sangue. Testemunhas viram-na chorar novamente. Mas cada testemunha relatou coisas diferentes, e as fotografias mostraram que nenhuma gota de sangue apareceu na face da estátua, exceto as primeiras. Além disso, o sangue era masculino e os donos da estátua sempre se recusaram a analisar seu DNA. Deixo as conclusões consigo.
É possível fazer uma estátua chorar sem tocá-la (este é um truque de laboratório, que reproduzi em entrevistas na TV). Numa estátua de gesso, oca, o líquido é guardado em um pequeno reservatório e escorre dos olhos. Os buracos não podem ser vistos porque estão cobertos por uma pequena quantidade de gesso que, por ser poroso, permite que o líquido escorra lentamente após alguns minutos.
Em 1996, muitas estátuas, em templos hindus, aparentemente bebiam leite de uma colher que lhes era levada à boca. O ‘milagre’ durou alguns dias. Em breve se percebeu que o leite não entrava realmente na boca, mas na verdade escorria pelo corpo da estátua.

Ligações:

www.luigigarlaschelli.itwww.cicap.org

https://sindone.weebly.com

https://skepticalinquirer.org/

Luigi Garlaschelli é um químico (agora reformado) e membro de C.I.C.A.P.  (italiano: Comitato Italiano per il Controllo delle Affermazioni sulle Pseudoscienze – português: Comissão italiana para o Controlo  das Afirmações nas Pseudociência).

Texto da revista Ateismo, nº 37, cedido por Luís Ladeira, tradutor.

15 de Janeiro, 2024 Eva Monteiro

Reflexões sobre a Origem da Crença

O nosso medo da inevitável finitude da vida humana levou-nos a procurar o divino. É certo que devemos ter questionado acerca dos fenómenos naturais que nos rodeavam e que não tínhamos ainda como explicar. Mas creio que acima de tudo, em algum momento da nossa existência como seres pensantes mas também profundamente emocionais, alguma mãe deve ter passado dias a cuidar de um filho moribundo em absoluto desespero. Algum caçador se deve ter visto caçado e, tendo a natureza como leito da morte em solidão, deve ter-se questionado se aquele momento seria mesmo o fim.

Não me inclino a pensar que a crença no divino tenha resultado na expetativa de uma vida pós-morte. Pelo contrário, parece-me que a esperança de que “isto” não fosse a nossa única existência, nos levou a imaginar um ser que pudesse garantir que o nosso sofrimento não seria em vão, nem que o fim fosse só isso.

Peçam, e será dado; busquem, e encontrarão; batam, e a porta será aberta.

Mateus 7:7-8

Sendo o ser humano dotado de infinita imaginação, neste caso, procurar leva mesmo à descoberta. Dizem os americanos que devemos parar de escavar quando encontramos um buraco. Foi precisamente isso que nos falhou. Em vez de criarmos uma ideia que nos aliviasse o fardo da morte, conseguimos ir muito além e criar um conceito que não só justifica a morte, como a torna apetecível. Pior do que isso, nem tampouco nos ficamos pelo desejo da morte individual, tivémos que extrapolar para o coletivo. Deixou de nos bastar que a morte passasse a ser uma sedutora amiga, para a desejarmos para toda a humanidade. Há-de vir o profeta, ou voltar, consoante o delírio. E com ele virá o apocalipse em que os vivos e os mortos (não-mortos? só um pouco mortos?) serão julgados e assistirão ao fim dos tempos.

O Juízo Final (Hieronymus Bosch) 1482

Para muitos, o apocalipse está iminente. Aliás, muitas pessoas viveram vidas inteiras convencidas de que veriam o fim dos tempos. E de que o fariam com prazer, vendo vizinhos e familiares arder no fogo eterno, num julgamento divino que não poderia distinguir-se do seu próprio. Questiono-me com frequência que tipo de dissonância cognitiva leva a que uma pessoa que se considera suficientemente merecedora de estar na presença do inefável divino, se comporte com esse nível de mesquinhez. Será porque acreditam que basta arrependerem-se? Será que é porque se consideram parte do povo escolhido de deus? E assim sendo, estão acima da moral que se exige aos restantes mortais?

Eles receberam ordens para não causar dano nem à relva da terra, nem a qualquer planta ou árvore, mas apenas àqueles que não tinham o selo de Deus na testa.

Apocalipse, 9:4

Ver o fim dos tempos é apenas ver o fim dos vivos, não o fim de tudo – tudo, tudo, mas mesmo tudo. E nem é um conceito particularmente original. Pelo contrário, vai aparecendo em quase todas as culturas ao longo dos tempos, num esforço de, digamos, acertar contas. É que mais uma vez, encontrámos um buraco mas continuámos a escavar. Já os antigos egípcios acreditavam que as suas almas seriam pesadas em comparação com uma pena. Só os justos, os que viveram de acordo com as regras divinas poderiam sentir essa leveza de espírito e entrar no reino dos bem aventurados. Mas, em data a anunciar, eis que viria, para muitas outras culturas, incluíndo aquela que melhor conhecemos hoje, a morte das mortes, o fim dos fins, o julgamento final.

Não lhe retiro valor pelo dramatismo, ainda que apresente graves problemas logísticos, que rivalizam apenas com a noção de que dois pinguins da Antártida viajaram mais de 13 mil quilómetros para entrarem na arca de Noé. É estrondoso pensar num evento dessa envergadura. Os mortos todos a voltar à vida, para serem julgados novamente, alguns a gritar “non bis in idem”! Quem acredita que está entre aqueles que vão sair ilesos desse espetáculo pirotécnico bem pode rir dos desgraçados dos pecadores, pior, ateus, a sofrer a maior confusão das suas vidas. Ou mortes. É que, para quem tem deus ao seu lado, há permissão para tudo, até para ser cruel. E para quem está acima do bem e do mal, até se pode julgar duas vezes o mesmo crime.

Disseram-me muitas vezes que sem deus não há moral. Sem deus, não resta ninguém acima de mim que eu tema. Sem esse temor, não há castigo que me obrigue a viver de forma justa. Sem deus, eu aparentemente sentir-me-ia tão livre, tão soltinha, que desatava a matar e a roubar, a pilhar e a esquartejar. Como ateia e até à data, diz a totalidade desses atos que me apeteceu. Ora, sendo que não vos escrevo de nenhum estabelecimento prisional, é fácil concluir que, por ser ateia, não me apetece propriamente arrancar os órgãos internos a ninguém. Pelo menos não depois de sair do trabalho. É que a justiça dos homens faz um excelente trabalho a manter-me nos eixos. Quem dera que a justiça divina tivesse impedido fosse quem fosse de cometer crimes horrendos, especialmente aqueles que aconteceram e acontecem no seio de muitas (todas? quase todas?) as organizações religiosas que conheço.

Pior do que isso. Significa então que os crentes só ajudam o próximo por temor a deus? Só amam por temor a deus? É apenas medo que os impede de cometer atrocidades? Às vezes penso que sim, que é isso que pensam sobre si próprios. E às vezes, cai-lhes um pouco os véus de moralidade divina. É nessas alturas em que vejo pessoas que rezam todas as noites, dizer que os sem-abrigo não querem é trabalhar, que quem anda de mini-saia é que anda aí a pedi-las, que não ser igual à regra é só moda para chamar à atenção, que tanto aperta a mão a este como o pescoço àquele. Se são todos? Não. Mas são muitos e eu cresci rodeada deles.

A diferença entre o ateu e o crente não é que o ateu não tem medo da morte. É que o ateu escolhe não se iludir. E ao fazê-lo, vive mais plenamente a sua vida, com a consciência de que não vai a lado nenhum depois, nem voltar de lá eventualmente. Ama mais livremente, porque ama sem motivos ulteriores. Quando faz algo pelo próximo, é porque realmente quer ajudar, não porque está a somar pontos. Vive consciente de que é insignificante neste universo que ninguém criou. Vive sabendo que ao morrer, devolve a matéria às estrelas.

Não me digam que não tenho pelo que viver por não acreditar numa vida após a morte e no deus que a garante. Para parafrasear Seth Andrews, não deixei de ter uma razão para viver, deixei de ter uma razão para ansiar a morte.

9 de Dezembro, 2023 Onofre Varela

O “25 de abril” para a Fé em Espanha

Texto de Onofre Varela publicado na imprensa escrita, a propósito de uma notícia de 25 de abril que aborda a alteração na fiscalidade das confissões religiosas em Espanha.

O jornal espanhol El País, na sua edição do dia 25 de Abril de 2023, insere uma notícia dando conta de que o “governo equiparou a fiscalidade de todas as confissões religiosas”. Ficamos a saber que foi dado o mesmo tratamento fiscal às religiões estabelecidas (e acreditadas) em Espanha. O governo assinou um acordo com a Igreja Ortodoxa, a União Budista, a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias (os Mórmons) e as Testemunhas de Jeová, pelo qual estas confissões desfrutam dos mesmos benefícios fiscais (incluindo a isenção de impostos em bens imobiliários [IMI], e em produtos destinados ao culto).

Estas isenções agora alargadas a outras confissões já eram praticadas na Igreja Católica, na Federação de Identidades Religiosas Evangélicas, na Federação das Comunidades Israelitas e na Comissão Islâmica. Perante estas isenções de impostos, a notícia garante que “Espanha dá um passo relevante na sua aposta pela laicidade e pela condição de um Estado aconfessional com a equiparação fiscal de todas as religiões”.

“Aposta na laicidade”?!… Parece-me haver aqui algum equívoco!… Todas as religiões deveriam ser comparadas a empresas, porque são isso mesmo que elas são: empresas da indústria da fé! (Tal como os clubes de futebol são indústrias do pontapé na bola). As religiões negoceiam com a fé dos crentes mantendo fábricas como Fátima e Meca, sem mãos a medir para escoamento do produto que fabricam carregando a bateria da fé dos crentes. Por isso deveriam ser tributadas como quaisquer outros serviços… como os de consultoria, por exemplo.

Este “pacote de isenções” parece-me que, numa sociedade justa, seria melhor empregue se contemplasse as padarias, porque o pão é essencial para toda a gente e não só para alguns… e as frutarias pela mesma razão do pão. Também a água e a energia eléctrica deveriam usufruir dessa benesse, pela mesma razão da essencialidade dos produtos na vida dos cidadãos. E também o peixe… e alguma carne. E os livros… e o teatro!… Mas… a religião?!!… Porquê isentá-la de impostos? Qual a necessidade de uma oração ou de uma tomada de hóstia? Quem necessita de satisfazer tal vício espiritual pode fazê-lo em casa, a sós, sem necessitar das “salas de chuto” que são as igrejas, mais as salas de reunião das seitas! Estas, deveriam pagar imposto por serem um luxo para quem entende alegrar a vida alimentando o vício da oração em conjunto, no êxtase colectivo.

A notícia informa que a razão desta dádiva fiscal se prende com a equiparação das empresas religiosas a Organizações Não Governamentais (ONG) e Fundações, e ainda porque essas religiões têm acordos de colaboração com o Estado. A isenção do IMI em Espanha não só contempla os templos de culto, mas também abrange a residência dos sacerdotes. As propriedades destas associações religiosas são calculadas pelo governo em 148 bens imóveis da Igreja Ortodoxa; 23 da Comunidade Budista e 785 das Testemunhas de Jeová. Os Mórmons têm uma propriedade em Madrid e mais 123 lugares de culto espalhados por todo o território espanhol. 

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico) 

 OV

Imagem de Heinrich Wullhorst por Pixabay
2 de Dezembro, 2023 Eva Monteiro

Da Infância à Apostasia

Nenhuma criança devia ser sujeita a qualquer tipo de ato religioso, já que carece da maturidade e discernimento para julgar por si mesma se dele quer tomar parte. Por outro lado, suspeito que é precisamente esse o objetivo. Começar cedo a combater o poder construtivo da indagação e da exploração na mente das crianças.

Há alguns dias fiz o meu pedido de apostasia, sobretudo porque não partilho da fé dos meus pais. Parece-me contudo, que a ausência de fé não é uma falha, assim como ter fé não é uma virtude. Não há nenhuma falha em recusar ideias dogmáticas sem fundamento, ou provas tangíveis. Não há nada de virtuoso em acreditar numa divindade que, sendo omnisciente, omnipotente e o expoente máximo da bondade, pudesse ter criado um mundo de infindável sofrimento. E sem que esse masoquismo lhe chegasse, esperar que nos vergássemos em adoração constante. Não há nada de virtuoso em apoiar instituições que deliberadamente passaram toda a sua existência a tentar atrasar o progresso da humanidade, opor-se à ciência, à liberdade e à decência do senso comum. Não há nada de virtuoso em acreditar que, nascendo numa aleatória localização geográfica, qualquer que seja a fé ali praticada, é convenientemente a única religião verdadeira e capaz de conceder salvação.

Não há nada de virtuoso em desperdiçar a única vida que temos, na expectativa de uma eternidade a adorar um ditador celestial. Ainda menos virtuoso é continuar a insistir nas supostas verdades da bíblia quando a Teoria da Evolução as deita por terra, a História as contradiz e a coerência as nega. E menos virtuoso ainda é atribuir a deus milagres nas pequenas coisas boas da vida e ignorar cataclismos, genocídios e atrocidades inimagináveis, votando-os ao misterioso plano divino. Isto, quando não é atribuído a um castigo pelos pecados da Humanidade, como se coisas como as placas tectónicas tivessem alvos a abater. Assim como dizer que se tem uma relação pessoal com essa insondável entidade que desaparece sempre que é necessária ou desejável, não é virtude, é delírio.

Sou ateia. Orgulho-me de o dizer publicamente e de não me esconder atrás da ridícula denominação “católica não praticante”. Fazê-lo apenas engrossa os falsos números que continuam a justificar uma Concordata que impede a plena laicidade deste país. Não acredito na existência do deus da bíblia, da tora, do corão ou de qualquer outro livro de ficção. Tal como não acredito em nenhuma divindade, nem em fadas, duendes e unicórnios. Aceitemos com honestidade intelectual que o que pode ser afirmado sem provas também pode ser rejeitado sem provas. Sou ateia. Afirmo-me absolutamente contra o poderio e compadrio de uma instituição religiosa que continua a sufocar uma sociedade que não obtém qualquer benefício na infantilidade de um amigo imaginário.

Sou ateia, nasci ateia. Fui batizada num momento em que não podia opor-me ou compreender o abuso a que estava a ser sujeita, ainda que os meus pais o tivessem feito de boa-fé, por tradição ou pressão de pares. Fui forçada a frequentar a catequese, numa das piores experiências de que tenho memória da minha infância. Fui forçada a assistir a missas que nunca me disseram nada, porque em nada podem acrescentar a um ser humano racional.

Fui forçada a ir confessar pecados que não tinha nem podia ter. Eram, afinal, tão imaginários quanto a autoridade divina de que se investia o padre, na primeira e última vez que coloquei os pés num confessionário. O mesmo que me afirmou que eu tinha que ter pecados e que me pressionou, naquela tenra idade, a não sair do confessionário sem que confessasse alguns, questionando-me sobre eventuais pensamentos contra a minha família. Afinal, era preciso vergar-me desde cedo à doutrina da culpa e da contrição, à perseguição do pensamento, ao alerta de que um deus cruel e desocupado me vigiava até no pensamento. Fui repetir umas avés-maria e uns pai-nossos como instruída, sem qualquer contrição, sem qualquer pecado. Fi-lo nas escadas da igreja da minha paróquia, juntamente com outras crianças que também não tinham idade para compreender a noção de pecado, quanto mais para o ter. O único pecado presente, e por pecado quero dizer falha moral, foi que aquilo nos tivesse sido solicitado. Pairava sobre nós a pressão de também ser pecado desobedecer ao Sr. Padre.

E assim fui obrigada a fazer uma “Primeira Comunhão” sem que tivesse idade para entender o que estava a fazer, de que comunhão estava a tomar parte. Para mim, era apenas um dia em que seria obrigada a usar um vestido branco, ir em fila comer uma hóstia que, diziam-me, não podia mastigar porque se tratava do corpo de Cristo. Sabia lá eu o que significava a transubstanciação ou quão ridícula e falsa é esta noção de canibalismo divino. Mas aterrorizava-me a noção de poder acidentalmente morder a carne de deus, principalmente quando se colou ao meu céu da boca, e eu achei com igual terror que teria de espetar um dedo numa parte desconhecida do corpo de Cristo para o desalojar.

Nenhuma criança devia ser sujeita a qualquer tipo de ato religioso, já que carece da maturidade e discernimento para julgar por si mesma se dele quer tomar parte. Por outro lado, suspeito que é precisamente esse o objetivo. Começar cedo a combater o poder construtivo da indagação e da exploração na mente das crianças. E assim, serão bons cristãos, bons muçulmanos, bons judeus, bons seja o que for. Porque nem lhes passará pela cabeça questionar. Sou ateia, nascemos todos ateus. Tentam retirar-nos essa virtude de questionar o mundo e buscar a verdade, convencendo-nos de que esta nos pode ser oferecida pelos senhores de paramentos mágicos num altar.

A minha experiência nesta instituição foi de opressão e culpabilização, de indoutrinação. Outros tiveram piores experiências ainda, e já não é possível à Igreja Católica esconder as suas muitas falhas, nem as disfarçar com as suas obras aparentemente altruístas. Por todos aqueles que foram abusados, psicológica, física, financeira e sexualmente, nenhum ateu de postura humanista pode aceitar ter o seu nome associado a esta instituição.

17 de Julho, 2023 João Monteiro

O humor como alvo de terroristas

Texto de Onofre Varela, previamente publicado na imprensa escrita.

Há dias cumpriram-se sete anos sobre o maior acto terrorista cometido em território francês desde há 50 anos. 

Em Paris, no dia 7 de Janeiro de 2015, pelas 11:20h, dois terroristas islâmicos fortemente armados com metralhadoras kalashnikov entraram na redacção do semanário satírico Charlie Hebdo depois de matarem o porteiro. Durante dois minutos dispararam a sangue frio contra os jornalistas-cartunistas que ali estavam reunidos na preparação do próximo número do jornal. Logo a seguir abandonaram as instalações deixando 12 vítimas mortais e cinco feridos. Na fuga ainda mataram um polícia e atropelaram um peão. 

Neste acto de terrorismo gratuito morreram os jornalistas cartunistas: Charb, Cabu, Tignous, Serge Wolinski e Philippe Honoré. Com eles também foram assassinados o revisor Mustafá Ourrad, os colunistas Elsa Cayat, Bernard Maris e o editor convidado Michel Renaud, mais um guarda-costas do desenhador Charb. 

A existência do guarda-costas justificava-se por, quatro anos antes, o mesmo jornal ter as instalações atacadas e incendiadas, tendo os atacantes feito uma ameaça de morte ao desenhador Charb (director do Charlie Hebdo), alegadamente pelo apoio dado ao jornal dinamarquês Jyllands-Posten (que publicou cartunes satirizando Maomé) publicando uma caricatura na capa do Charlie representando Maomé tapando os olhos de vergonha, dizendo: “É duro ser amado por idiotas”.

Esses idiotas continuam a sê-lo. Há idiotas em todos os meios sociais… e alguns até são assassinos! 

Na proximidade do aniversário do atentado terrorista ao semanário satírico francês, o jornal espanhol El Mundo, no suplemento cultural La Lectura do último dia 6 de Janeiro, entrevistou o director do Charlie Hebdo, Riss, que foi um dos feridos no ataque de há sete anos, sobrevivendo a um tiro que lhe perfurou um ombro. Riss confessou sentir-se ultrajado pelos advogados de defesa dos terroristas islâmicos que são presos e levados a tribunal, por defenderem a inocência dos terroristas, alegadamente por também eles serem “vítimas das injustiças da sociedade”… colocando os assassinos ao mesmo nível dos assassinados! 

Já Charb (o director morto há sete anos) quando do primeiro ataque extremista religioso de que o jornal foi alvo em 2011, disse não culpar os muçulmanos “por não rirem dos nossos desenhos, simplesmente porque eu vivo sob a lei francesa, não da lei corânica”. 

Nos últimos oito anos as acções terroristas islâmicas mataram 264 pessoas só em França, incluindo neste número 131 espectadores na sala de concertos Bataclan em 2015. 

Na entrevista ao El Mundo, Riss mostra-se pessimista com o evoluir dos acontecimentos naturais e sociais no mundo. As suas preocupações centram-se nos problemas específicos da nossa época, como a liberdade de expressão, as redes sociais, as mudanças climáticas, a insegurança, o desemprego e o bem-estar social. 

Entende que as novas gerações não consideram estes tão importantes parâmetros, nem sequer têm a noção de que pode ruir tudo quanto já foi conquistado nos últimos 50 anos. “Há jovens de 20 anos que pensam como gente de extrema-direita de há 30 anos, e o curioso é que essa juventude se reivindica de Esquerdas, não dando conta de que praticam um moralismo ultra-reaccionário!” 

É com esta juventude que vivemos, e se os responsáveis políticos não fazem nada para que as noções de liberdade e de opressão sejam perfeitamente entendidas… o nosso futuro poderá ser bastante negro. E quando é um humorista a alertar para este desfecho trágico… o alerta deve ser tomado bastante a sério!

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

OV

12 de Julho, 2023 João Monteiro

Na morte de Ratzinger

Texto de Onofre Varela, previamente publicado na imprensa escrita.

Morreu Joseph Ratzinger (1927-2022), bispo alemão que desempenhou o papel de Papa Bento XVI (B16) no elenco do Teatro Vaticano. No momento da sua morte tecem-se os elogios fúnebres habituais e usam-se abundantemente os adjectivos do costume enaltecendo as qualidades do defunto. Marcelo Rebelo de Sousa disse que B16 “foi filósofo, pensador e intelectual, e que procurava o diálogo entre a fé e a ciência”. Procurava?!… Se procurava, não encontrou!…

O livro A Origem das Espécies, de Charles Darwin, foi editado em 1851. Hoje a Teoria da Evolução continua a ser um engulho para muita gente de religião, desde a Igreja Católica até às Testemunhas de Jeová. Isso mesmo se pode ler no livro Criação e Evolução – uma jornada com o Papa Bento XVI em Castel Gandolfo. Trata-se de uma obra com 190 páginas, editada em 2007 pela Universidade Católica. O livro resultou de um simpósio organizado por uma coisa que dá pelo nome “Círculo de Discípulos do Papa Bento XVI” e decorreu em Castel Gandolfo de 1 a 3 de Setembro de 2006.

Da leitura do livro “Criação e Evolução” concluí que a sapiência de B16 sai muito desfavorecida perante o saber de qualquer aluno do 5º ano de escolaridade, que sabe que o Homem teve de subir uma escada de progressos evolutivos desde que surgiu toscamente esboçado como Proconsul, até à forma de Homo, e depois sapiens, com especial destaque no período em que começou a ter consciência de si, enquanto Neandertalense

Curiosamente o sapientíssimo Ratzinger não sabia disso! Repare-se nesta sua falta de sapiência: no livro referido, ele quer encontrar uma “ética evolucionária” nos estudos de Darwin e diz que “o conceito se encontra inevitavelmente no modelo da selecção e, portanto, na luta pela sobrevivência, na vitória do mais forte, na adaptação bem sucedida, [o que] oferece muito pouco de consolador. Mesmo quando se quer embelezá-la de múltiplas maneiras, permanece afinal uma ética cruel. O esforço de destilar do irracional o racional, fracassa aqui com toda a evidência. Tudo isto tem pouca utilidade para conseguir a ética, que nos faz falta, de paz universal, da prática do amor ao próximo, e da necessária superação daquilo que é de cada um de nós […] a verdadeira razão é o amor, o amor é a verdadeira razão. Na sua unidade são o verdadeiro fundamento e a finalidade de todo o real”. 

Isto de misturar evolução natural com amor… não lembraria ao diabo!… Ratzinger quis passar a mensagem de que a selecção natural é algo de aniquilador e de racional! Algo que pertence, voluntária e conscientemente, à vontade dos homens e que se traduz numa “luta pela sobrevivência e na vitória sobre o mais fraco”, como se fosse uma guerra, como aquela que os Cristãos alimentaram contra os Sarracenos e Putin faz aos Ucranianos! Como se a selecção natural fosse um acto político pensado por uns homens contra outros homens! O que, evidentemente, não é verdadeiro. 

A selecção natural deu-se na espécie humana quando os Homo sapiens ocuparam o lugar dos Neandertais, e já tinha acontecido o mesmo quando estes sobreviveram aos Australopitecus. A ascensão do Homo sapiens sapiens fez-se por ser mais dotado para sobreviver no seu meio ambiente, porque detentor de meios racionais e inventivos, ferramentas que os seus ancestrais não possuíam na medida certa, e que surgiram naturalmente pelo sistema replicativo codificado no ADN, capaz de produzir mutações favoráveis às gerações futuras se fizerem uso delas. Isto é que é a selecção natural da espécie humana, e não constitui qualquer ética porque não tem nada a ver com a consciência e a vontade dos homens que, coitados, viveram tal selecção sem dela terem conhecimento. Nós hoje é que a conhecemos e estudamos… eles não a perceberam… e Ratzinger também não, o que é bem pior!… 

O amor ao próximo ou a falta de amor, o guerrear ou construir a paz, são peças de outras realidades alheias àquilo que se entendeu designar por selecção natural. Os actos políticos protagonizados pelos homens fazem as transformações sociais, mas nunca as selecções naturais como Ratzinger pretendeu afirmar. A ética não está presente numa manifestação natural. Não há ética no ribombar de um trovão nem na germinação de uma semente. Nem ética, nem amor. A ética é um objecto estético filosófico, e o amor é um sentimento. Ambos só podem ser produzidos e percebidos por cérebros inteligentes… e o senhor Ratzinger, possuindo um intelecto de gabarito (como dizem), devia saber disto… e parece que não sabia! No mesmo livro, o seu admirador cardeal Christoph Schönborn, que prefaciou a obra, atingiu um patamar optimizado quando desabafou: “Se a afirmação de que o mundo vem de um plano, de uma meta posta pelo Criador, se revelasse como cientificamente insustentável, então a fé num Deus criador e na sua providência seria também irracional […] seria uma fé que se edifica sobre um fundamento absurdo, não seria fé alguma, mas uma ilusão… ”. Exactamente, senhor cardeal!… Bravo!… (Aplausos). Só tenho um reparo a fazer a este desabafo cardinalício: o sentido religioso e o conceito de Deus, não pertencem ao irracional, porque o irracional nada entende e nada cria. O sentido da religiosidade e o próprio conceito de Deus, são produtos do raciocínio. Só pela inteligência e capacidade de raciocinar, de sentir e de se emocionar, é que foi possível ao Homem ser filósofo, artista, cientista, criador de deuses e ser religioso ou ateu. E o senhor Joseph Ratzinger pode ter sido muito boa pessoa (o que duvido porque perseguiu e destruiu a Teologia da Libertação de Gustavo Gutiérrez, Leonardo Boff, Jon Sobrino e outros, quando estava à frente do gabinete vaticano Congregação para a Doutrina da Fé) mas só foi religioso… e fundamentalista… porque não leu os livros que o podiam transformar no intectual de gabarito que dizem que foi!…

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

OV

Imagem de Francesco Nigro por Pixabay
23 de Novembro, 2022 João Monteiro

“Não há religião que mande matar”

Texto de Onofre Varela, previamente publicado no semanário Alto Minho.

A RTP é a única entidade difusora de notícias que, a nível nacional, através da rádio e da televisão, dá voz a outras crenças religiosas para além da Igreja Católica, e fá-lo no cumprimento do serviço público que presta. “E Deus criou o mundo” é o título de uma rubrica semanal que vai para o ar na Antena 1 da rádio, às Quintas-feiras, entre as 23 e as 24 horas, com repetição ao fim-de-semana (presumo que ao domingo, cerca da hora do almoço). Nele intervêm militantes de três religiões: um Católico, um Muçulmano e um Judeu.

Num dos programas ouvi da boca de um dos intervenientes (presumo que do judeu), a frase que dá título a esta crónica: “Não há religião que mande matar”. Aprecio a sua atitude pacífica pretendendo branquear todos os actos religiosos, mas… esta afirmação é falsa!… Não só porque a História está cheia de “guerras religiosas” onde se matava (e mata) por obediência a uma certa interpretação de escritos com teor religioso, mas também porque o próprio Corão (livro sagrado do Islão), é explicito na ordem de matar os infiéis: “Combatei no caminho de Deus aqueles que vos combatem […]. Expulsai-os de onde vos expulsaram […] se vos combatem, matai-os: essa é a recompensa dos incrédulos […]. Matai-os até que a perseguição não exista e esteja no seu lugar a religião de Deus” (II – 190, 191, 193). É a Jihad: a “guerra santa” que todo o muçulmano se obriga a levar a cabo para defender e alargar o domínio do Islão na sua versão mais fundamentalista.

Na leitura que fiz do Corão listei 72 ameaças nas primeiras 112 páginas (embora nem todas de morte), apenas até ao fim do quinto capítulo… e a obra tem 114 capítulos! Era fastidioso anotar tantas ameaças e deixei de as registar. Para além desta ameaça de morte concreta registada no livro sagrado do Islão, todos nós sabemos das práticas criminosas de extremistas islâmicos que os noticiários das televisões nos mostram, desde a decapitação de pacíficos cidadãos, cuja degola já foi filmada para ser mostrada como intimidação ao ocidente, até à deflagração de potentes bombas entre cidadãos anónimos, em mercados, escolas ou igrejas, passando pelas mortes por atropelamento em zonas pedonais, e a tiro, com disparos indiscriminados em salas de espectáculos ou noutros locais com aglomerados de gente pacífica e ordeira.

A História lembra-nos as práticas nada dignas que a Igreja Católica também cometeu no tempo da Inquisição de má memória, que manchou de sangue as mãos de fiéis muito piedosos e tementes a Deus, mas que, enquanto “juízes da Inquisição”, matavam (ou mandavam matar) aqueles que eram alvo de denúncia por não praticarem a Religião Católica “conforme os Mandamentos de Deus”! 

Torturas sádicas e assassínios monstruosos enchem muitas páginas da História da Igreja… tudo praticado pelo “Santo Nome de Deus”!… Isto mostra que o conceito de Deus… afinal, é perigoso!

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

OV

Imagem de ahmadreza heidaripoor por Pixabay
16 de Novembro, 2022 João Monteiro

“Servir a deus e ao dinheiro”

Texto de Onofre Varela, previamente publicado na Gazeta.
Nota: Este texto foi inspirado no discurso de José Antonio Pagola, já aqui mencionado há umas semanas.

De vez em quando os bispos portugueses juntam-se ao coro de protestos do povo sofredor tentando alertar a classe política e o governo para os malefícios que produzem na sociedade. Mas muitos desses discursos soam a falso, não só porque são beatos e inoperantes, mas também porque são proferidos em tempo de governo constituído por partidos de Esquerda. 

Alguns desses discursos direccionam-se para interesses particulares do culto condenando a lei do aborto voluntário, do casamento homossexual e da prática da eutanásia por quem a deseja. Não o fazem com a mesma veemência em tempo de governos da Direita, quando estes destroem a classe média, estrangulam os trabalhadores com elevadas taxas de desemprego e vendem património público a interesses privados. 

Com tais atitudes os bispos portugueses demonstram o que sempre demonstraram: que estão com o poder da Direita como sempre estiveram na ditadura de Salazar (as excepções contam-se pelos dedos de uma mão e sobram dedos. Eu conheço duas: Manuel Martins, que foi bispo de Setúbal; e Januário Torgal, que foi bispo das Forças Armadas). 

A Igreja Espanhola assume a mesma tendência, o que motivou uma tomada de posição da “Associação de Teólogos e Teólogas João XXIII” que, reunida em congresso em Madrid (há 10 anos), se insurgiu contra o silêncio da hierarquia da ICAR perante a crise, dizendo: “Não podeis servir a Deus e ao dinheiro”. 

Na altura a imprensa espanhola destacou o discurso de José Antonio Pagola (jornal El País, 10-9-2012), que foi vigário geral da diocese de San Sebastian durante mais de duas décadas e que viu o seu último livro “Jesus, uma aproximação histórica”, a ser investigado pela Inquisição Vaticana a pedido da Conferência Episcopal Espanhola. O livro rapidamente se transformou em clandestino, pois foi retirado do mercado por ordem da Igreja antes de ser esgotada a nona edição e já com 140.000 cópias vendidas, não só em Espanha, mas também no Brasil, Itália, EUA, Inglaterra e em toda a América Hispânica. 

“A hierarquia da Igreja não lidera os movimentos de conversão ao Evangelho” disse Pagola no seu discurso de encerramento do congresso. E continuou: “O governo está a mudar o país com medidas que atiram centenas de milhar de pessoas para a exclusão, e a Igreja não vê nenhuma revolução. Desde Jesus, não podemos ficar nem mudos nem conformados. A partir da Igreja temos que denunciar essa falta de compaixão. Os que sofrem não esperam doutrinas sociais nem justificações económicas tão mentirosas e imorais. Pedem que os defendamos. A hierarquia fala em nome dos que sofrem, mas não os leva no coração. […] O governo é despótico, anti-social e anti-cristão, e a hierarquia da Igreja está calada ou fala sem audácia evangélica. A voz dos sem voz não se ouve. Adoramos o crucificado, mas esquecemos os crucificados de hoje. Jesus atreveu-se a insultar os ricos do seu tempo”.

Este discurso aconteceu em Espanha há uma década. E por cá?… A coisa é diferente?!… A pregação da Fraternidade só faz sentido se for expurgada dos interesses de movimentos expressamente criados por organizações religiosas ou laicas que se governam com ela, transformando-a em indústria e alavanca social para os seus promotores. A fraternidade verdadeira (embora seja de prática obrigatória por cada um de nós) enquanto organização eficaz e sem duplo interesse, pertence ao Estado concretizá-la com medidas sociais e económicas eficazes, não permitindo que haja um cidadão sem rendimento que lhe permita comer e ter habitação. O Homem é um ser fraterno, mas a “caridade religiosa” é do mais falso que a sociedade promove em épocas sazonais como o Natal… e, quantas vezes, não respeita a dignidade daquele que é ajudado…  (claro que, também aqui, há sempre as excepções que afirmam a regra!…)

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

OV

Imagem de Harry Strauss por Pixabay
31 de Outubro, 2022 João Monteiro

Pela Paz

Texto de Onofre Varela, previamente publicado na Gazeta

As convulsões sociais constituem sempre um excelente pretexto para os credos religiosos ditos defensores do bem contra o mal e da harmonia entre os povos (e nem todos eles têm estas características humanitárias), virem a terreiro deixar a sua palavra em defesa da paz e da concórdia. Assim fez o Papa Francisco há poucos dias, com a Europa mergulhada numa guerra desencadeada pelo ditador Putin que invadiu um país vizinho, matando e destruindo. 

Habitualmente as religiosas intenções moralizadoras são inoperantes, porque moral é coisa que o fazedor da guerra não tem, nem quer ter… nestas condições, não é o chefe de uma Igreja (que nem é a do ditador) que lhe vai refrear os instintos de poder e de domínio. 

O Papa Francisco consagrou, na passada Sexta-feira, a Rússia e a Ucrânia ao Imaculado Coração de Maria, numa celebração realizada em simultâneo no Vaticano e em Fátima. Acredito que para as mentes religiosas tenha sido um acto redentor e todos os que nele participaram se sintam de bem consigo na fraternidade que demonstraram sentir pelo Povo Ucraniano… mas acredito ainda muito mais que, em termos práticos, da vida real, da realidade que faz a guerra… tais actos redentores valem… zero! 

Não só neste momento de guerra na Ucrânia, mas também na nossa realidade política e económica de todos os dias, em momentos de convulsões sociais, às vezes os bispos juntam-se ao coro de protestos do povo sofredor, alertando o governo para práticas políticas ou económicas que, na óptica da Igreja, prejudicam o Povo. 

Muitos desses discursos soam a falso, porque são beatos e inoperantes (e também porque são proferidos em tempo de governo constituído por partidos de Esquerda que nem vão à missa!). Alguns dos discursos religiosos defendem interesses particulares do culto, como a condenação do aborto voluntário, do casamento homossexual e da prática da eutanásia por quem a deseja. Discursos que não são feitos com a mesma veemência em tempo de governos da Direita, quando estes destroem a classe média, estrangulam os trabalhadores com elevadas taxas de desemprego e vendem património público a interesses privados. 

Estou a lembrar-me de uma notícia divulgada pela imprensa espanhola há cerca de 20 anos, na qual se dava conta da mesma tendência de defesa dos interesses da Direita Política pela Igreja de Espanha, o que motivou uma tomada de posição da Associação de Teólogos e Teólogas João XXIII que, reunida em congresso em Madrid, se insurgiu contra o silêncio da hierarquia da Igreja Católica perante a crise, dizendo: “Não podeis servir a Deus e ao dinheiro”. 

O porta-voz deste recado dirigido aos bispos espanhóis foi José Antonio Pagola, que exerceu o cargo de vigário geral da diocese de San Sebastian e viu o seu último livro Jesus, Uma Aproximação Histórica, a ser investigado pela Inquisição Vaticana. O livro rapidamente se transformou em clandestino porque foi retirado do mercado por ordem da Igreja antes de ser esgotada a nona edição e já com 140.000 cópias vendidas em Espanha, no Brasil, em Itália, nos EUA e em toda a América Latina. “A hierarquia da Igreja não lidera os movimentos de conversão ao Evangelho” disse Pagola no seu discurso de encerramento do congresso. 

E continuou: “O governo está a mudar o país com medidas que atiram centenas de milhar de pessoas para a exclusão, e a Igreja não vê nenhuma revolução. Desde Jesus, não podemos ficar nem mudos nem conformados. A partir da Igreja temos que denunciar essa falta de compaixão. Os que sofrem não esperam doutrinas sociais nem justificações económicas tão mentirosas e imorais. Pedem que os defendamos. A hierarquia fala em nome dos que sofrem, mas não os leva no coração. […] O governo é despótico, anti-social e anti-cristão, e a hierarquia da Igreja está calada ou fala sem audácia evangélica. A voz dos sem voz não se ouve. Adoramos o crucificado, mas esquecemos os crucificados de hoje. Jesus atreveu-se a insultar os ricos do seu tempo”. 

A actual pregação da Fraternidade faz sentido nos conceitos religiosos e nas atitudes de alguns seguidores dos cultos, mas não resolve os problemas definitivamente. A verdadeira fraternidade, quando a nível de um país, pertence ao Estado concretizá-la com medidas sociais colectivas, na defesa da Paz e do bem-estar. O Homem é um ser fraterno e dado à fé… mas as atitudes de fé são inoperantes na resolução de problemas gigantes, principalmente quando o problema se chama Guerra! 

Aí… só se ouve a voz das armas. 

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico) 

 OV

18 de Fevereiro, 2022 Carlos Esperança

A Irmã Lúcia e a estátua

Passei hoje junto ao Carmelo de Santa Teresa onde a escultura de bronze da mais antiga reclusa serviu de argumento à freguesia da Sé Nova, para a campanha autárquica. Lúcia está para o PSD de Coimbra como o cónego Melo para o PS, sem honra, em Braga.

A vida desta mulher, a quem os padres educaram pelo catecismo terrorista, que havia de percorrer ainda a minha infância, é a metáfora do Portugal salazarista que fez de Fátima o instrumento contra o comunismo, depois de ter nascido para execrar a República e as suas leis, sobretudo as do divórcio, do Registo Civil obrigatório e da herética separação da Igreja/Estado.

Não sei se o terço é o demífugo mais potente mas sei que foi o instrumento de alienação do povo, durante a ditadura. Nas noites de maio presidia ao mês de Maria, à luz de uma candeia de azeite, um ancião da aldeia donde o homem que sou trouxe a criança que fui. Era ele que dirigia o terço, iniciava os mistérios, padres-nossos e ave-marias, que a Irmã Lúcia mandava rezar pela conversão da Rússia, sem esquecer os «nossos governantes» para quem suplicava iluminação e longa vida, atendendo o Céu apenas a parte final do pedido.

Hoje, a Irmã Lúcia, que, em vida, encarceraram no convento, veio em bronze ver a rua que lhe era vedada, exceto para votar em quem mandasse aquele que, segundo ela, foi o enviado da Providência, envio que muitos portugueses não perdoam.

A Ir. Lúcia foi íntima da Sr.ª de Fátima, que lhe deu a conhecer profecias e conceitos de geopolítica,  só a ela, enquanto a Jacinta só a ouvia e o Francisco não via nem ouvia, o que não os impediu de se terem adiantado no caminho da santidade com a ‘joit venture’ com que curaram Emília de Jesus, de uma paralisia intermitente, pouco antes de morrer perfeitamente curada.

A Irmã Maria Lúcia de Jesus e do Coração Imaculado, Irmã Lúcia para os mais íntimos, volta a sentir o vento que na Cova da Iria a fustigava, enquanto orava e guardava cabras. Não será o vento livre, que vergava as azinheiras, onde a virgem saltitava, e que varria o chão do anjódromo onde o anjo poisou, travado pelas paredes grossas do Carmelo. Mas será de novo, na sua face de bronze, enquanto goza a eterna defunção e lhe preparam os dois milagres para a santidade, um regresso ao ar livre, donde tão cedo a retiraram, para a oferecerem à clausura.

06-ESTATUA-DA-IRMA-LUCIA-CJM