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Categoria: Arte e cultura

18 de Janeiro, 2021 João Monteiro

O que é mais perigoso: o teatro ou a missa?

Devido à situação pandémica que estamos a viver, o governo viu-se na obrigação de tomar medidas para controlar o progresso da pandemia em território nacional. Com o aumento do número de casos e com o agravamento da saúde dos cidadãos, o governo optou por adotar um discurso em que endureceria as medidas advogando um confinamento mais rigoroso. Se concordo com a intenção, porque a situação assim o exige, a verdade é que o confinamento rigoroso tornou-se num confinamento suave repleto de exceções. Isto apesar de alguns estabelecimentos fecharem de facto, como os cabeleireiros e outros terem sido alvo de restrições de funcionamento, como os restaurantes.

Mas se conseguimos compreender nalguns casos, mesmo que isso afete a vida das pessoas e da economia, como é o caso dos exemplos referidos dos cabeleireiros e restaurantes, por serem espaços fechados onde se aglomeram pessoas (mesmo sabendo que a atividade destes espaços se adaptou durante a pandemia, com diversas medidas como o distanciamento e a desinfeção mais cuidada), já temos mais dúvidas relativamente a outras medidas como o fecho de atividades culturais, como teatros, bibliotecas ou arquivos. E essas dúvidas aumentam quando comparamos com outras medidas de exceção como é o caso da realização de missas.

Antes de avançarmos, quero começar por deixar a minha opinião geral sobre o tema do confinamento, que considero importante para se compreenderem as minhas motivações. Considero que tem de haver confinamento e que quaisquer que sejam as medidas apresentadas haverá sempre concórdia e discórdia, pois, como todos sabemos e já diz o ditado popular, é impossível agradar a gregos e a troianos. Mais considero que a situação pandémica veio a dificultar a atuação do governo, e que mesmo não concordando com todas as medidas (por um lado, considero que pecam por defeito; por outro lado, elogio o governo por não tratar os cidadãos de modo paternalista), o governo conta com o meu apoio nesta situação difícil de saúde pública que, direta ou diretamente, nos afeta a todos. Ou seja, a crítica que de seguida apresento visa o desequilíbrio das medidas atribuídas à prática cultural e a religiosa.

Vejamos. Por um lado vemos as atividades culturais suspensas. Foram teatros, concertos, convívios, tertúlias, museus, bibliotecas que se encerraram. Atividades que já tinham sido numa primeira fase suspensas e em que numa segunda fase de reabertura se souberam adaptar, com ensaios distanciados e com máscara, com assentos do público também com distanciamento, com entradas e saídas ordenadas (em vez de multidões aglomeradas), enfim, com consciência cívica desde os organizadores ao público. Todas as pessoas precisam de cultura. Por outro lado temos as missas, que com a pandemia também assistiram a limitações à sua atividade, mas cuja atividade também se soube adaptar às circunstâncias, limitando o espaço disponível, aumentando o distanciamento e alterando algumas práticas ritualísticas. Compreendo que algumas pessoas, nesta fase, precisem do consolo que creem que a espiritualidade e a religião lhes possam dar.

É precisamente nesta descrição que fiz que reside a minha incompreensão: ambas as atividades se souberam adaptar às circunstâncias, mas a cultura é para todos e as missas são só para alguns. Por isso, questiono-me porque é que umas veem as portas encerradas enquanto outras mantêm as portas abertas. E já nem comento o facto desta medida discriminatória ter tido lugar num Estado Laico! Com isto, não posso deixar-me de questionar: será que ir ao teatro é mais perigoso para a minha saúde do que ir à missa? Não creio.

Por fim, o que esperava era que, no mínimo, a decisão de abertura ou fecho fosse idêntica para as duas atividades. Mesmo que se optasse pelo encerramento geral, as pessoas podem sempre orar em casa. E nós, não crentes? Aproveitemos esta fase de confinamento para ler, para ouvir música, para visitarmos museus online, para assistirmos a musicais no youtube, para escrever, desenhar ou pintar, que são outras maneiras de nos mantermos ligados à cultura.

Imagem de Mustangjoe
23 de Junho, 2018 Vítor Julião

O gato do ashram

 

“Quando, às tardes, o guru se sentava
para as práticas do culto, o gato de ashram
tinha por norma vaguear entre os fiéis.
Como a estes distraísse,
mandou o guru que atassem o gato
enquanto o culto se desenrolasse.

 

 “Muito depois de o guru ter desaparecido,
continuavam a prender o gato
durante o culto já referido. E quando o gato morreu,
arranjaram outro para o ashram
para o poderem atar durante o culto vespertino.

 

“Séculos mais tarde, os discípulos do guru
escreveram tratados
sobre o imprescindível papel
desempenhado pelo gato na realização
de um culto como o estabelecido.”

 

Texto de Anthony de Mello (El canto del pájaro)

25 de Dezembro, 2014 Carlos Esperança

Natal

Em meados do século XX o Natal era oportunidade para reunir as famílias. Os ausentes voltavam todos os anos à aldeia de origem, nas carruagens de 3.ª classe de comboios apinhados de pessoas e cabazes, com odores a que se resignavam as pituitárias de então.

Através do vidro partido, ou da janela avariada, o ar gélido entrava nas carruagens e nos corpos. Os passageiros partilhavam a vida e as merendas nas penosas e longas viagens de pára-arranca. Os Senhores Passageiros precisavam de embarcar, ou de desembarcar, e a máquina a vapor, de abastecer de carvão a fornalha e de água a caldeira.

Às vezes o comboio parava nas subidas para que a caldeira ganhasse pressão e pudesse rebocar o peso acrescido que deslocava. Entre Lisboa e a Guarda era normal um atraso de duas ou três horas, pela Beira Alta, e mais ainda pela Beira Baixa.

Nas estações e apeadeiros esperavam bestas e pessoas, impacientes e enregeladas. À chegada do comboio havia abraços, ternos e demorados, e lágrimas de alegria. Do comboio acenavam mãos e ouviam-se votos de Feliz Natal quando o apito anunciava o retomar da marcha. Aos que se apeavam, só o caminho lamacento os separava, então, da casa da aldeia onde aguardavam os parentes que ficaram em ansiosa espera.

Quando eram pequenas as casas e numerosas as famílias, sobrava sempre lugar para os que chegavam. A ceia de Natal era o momento mágico que matava fomes ancestrais e a saudade das ausências.

Na lareira fumegavam panelas cheias, cujos odores, fundidos com os que vinham da sala, traziam à memória os sabores da infância.

A candeia de azeite iluminava os trajetos domésticos enquanto o candeeiro a petróleo projetava as sombras dos familiares reunidos em conciliábulo.

Estranhava-se o milagre que permitira tantas postas de bacalhau, já que os repolhos e as batatas os dava a horta e os frutos eram secos no tempo devido. Rabanadas, arroz doce, sonhos, filhós e toda aquela variedade de guloseimas eram fruto dos ingredientes próprios e de segredos herdados, a que o lume brando da lareira requintava o sabor.
Não deixava de ser estranho que tanto desse, quem tão pouco tinha, e negasse, avaro, quem muito podia. Eram esses os tempos, ainda são assim as pessoas que restam.

Ceavam primeiro as crianças, por questão de espaço e de impaciência; passavam, depois, à sopa, os mais velhos, antes de se saciarem no bacalhau, repolho e batatas, regados com azeite. Só depois de esgotado o vinho no garrafão e de se ver o fundo à panela se entrava nas sobremesas, nas aguardentes e na jeropiga.

As crianças impacientavam-se com a demora do menino Jesus que raramente trazia os presentes que ansiavam, mas conformavam-se com os que lhes coubessem. Os adultos sugeriam-lhes a cama enquanto os sapatos rodeavam a lareira à distância conveniente do lume que ainda crepitava. O sono acabava por vencê-las, adormecendo primeiro as mais pequenas, que as mães e a avó iam depositando em camas improvisadas.

No pouco espaço disponível havia ainda lugar para o presépio, uma ingénua encenação do mito cristão, que o pinheiro, oriundo de outras culturas, havia de substituir num prenúncio da globalização, para acabar feito de plástico, coberto de bolas coloridas.
De manhã, à medida que acordavam, os miúdos corriam para a chaminé, ansiosos por encontrar as prendas e exultavam com os presentes.

O Menino Jesus que, então, descia pelas chaminés, foi trocado pelo Pai Natal, a viajar de trenó, puxado por renas, em terras onde só a neve fazia jus à nova fábula que roubou o encanto dos musgos, da serradura, do algodão em rama e dos animais que rodeavam o menino de barro, deitado em berço de palha.

Nos sapatinhos, onde então cabiam os chocolates e os carrinhos de corda, que faziam as delícias das crianças, o terço para a tia beata ou a onça de tabaco para o avô, não cabem hoje os jogos de computador, esperados sem ansiedade, nem os presentes embrulhados em papel reluzente.

Alguns pais ainda voltam aos sítios de origem para mostrar, aos avós, os netos, com o mesmo ar de enfado com que os levam ao Jardim Zoológico, a verem a girafa e o elefante, ou os metem nos Centros Comerciais. Mas o mais frequente é tirar os velhos da toca e pô-los a fazer o percurso inverso, com 50% de desconto no preço do bilhete, num exílio que começa na véspera da consoada e termina, no início do Ano Novo, com a devolução ao habitat.

Mudaram-se os tempos. Do Natal que havia, resta a recordação das crianças que foram.

O cronista, serve-se do texto que há anos publicou no Jornal do Fundão para, à guisa de boas-festas, o dedicar aos leitores do Diário de uns Ateus.

25 de Junho, 2014 Raul Pereira

Dois parágrafos que valem bem mais do que 500 paus

É inato ao homem o querer saber: a poucos é dado o saber querer; a menos ainda o saber. Para mim não abriu a fortuna excepção. Desde o começo da minha vida que eu, dado à contemplação da natureza, tudo perscrutava sem descanso. A princípio o meu espírito, ávido de saber, contentava-se com qualquer alimento que se lhe oferecia; a breve trecho, porém, se lhe tornou impossível digerir e começou a vomitar tudo o que ingerira. Tratava eu já então de ver com todo o cuidado o que havia de dar-lhe que ele digerisse e assimilasse bem: nada havia que satisfizesse os meus desejos. Passava em revista as afirmações dos passados, sondava o sentir dos vivos: respondiam o mesmo; nada, porém, que me satisfizesse. Algumas sombras de verdade, confesso, me entremostravam alguns; mas não encontrei um só que com sinceridade e duma maneira absoluta dissesse o que das coisas devíamos julgar. Voltei-me então para mim próprio; e pondo tudo em dúvida como se até então nada se tivesse dito, comecei a examinar as próprias coisas: é esse o verdadeiro meio de saber.

Levava as minhas investigações até aos primeiros princípios. Iniciando aí as minhas reflexões, quando mais penso, mais duvido: nada posso compreender bem. Desespero. No entanto persisto. Mais. Consulto os Doutores buscando neles avidamente a verdade. Que respondem? Foi-se cada um deles construindo a ciência com alheias ou próprias fantasias: destas inferiram outras, e destas outras ainda; e assim, nada ponderando bem e afastando-se da realidade, arranjaram um labirinto de palavras sem algum fundamento de verdade. Aí não obterás a compreensão das coisas naturais, mas aprenderás a textura de novas coisas e ficções, de cuja inteligência nenhum espírito é capaz. Efectivamente, quem será capaz de compreender o que não existe?

Francisco Sanches (1550-1623), Quod Nihil Scitur (Que nada se sabe), trad. Basílio de Vasconcelos, Lisboa, Vega, 1991 (1.ª ed. Lyon, Ant. Gryphium, 1581) .

Francisco Sanches 500 escudos

12 de Agosto, 2013 Carlos Esperança

DN – Suplemento Q – LER (2) – FIM

Suplemento Q_o convidado. DN – 10_06_2013

Convidado como presidente da Associação Ateísta Portuguesa, deixo aqui as respostas que dei:

LER

«Porque não sou cristão» – Neste livro, Bertrand Russel, insigne matemático, filósofo e escritor, galardoado com  o prémio Nobel da Literatura, prestou um enorme contributo à causa do ateísmo. O seu ateísmo, que não era militante, impediu-lhe a docência numa Universidade americana, tal a sanha que o ateísmo despertava, e ainda desperta.

No fundo invocou dois argumentos para justificar o título e o conteúdo do livro. Um argumento intelectual, que o impedia de acreditar em afirmações que não pudessem ser comprovadas; e outro, de natureza moral, que o impelia a ter valores civilizados e humanistas completamente inexistentes na época em que Deus foi criado.

De facto, hoje, quando a pena de morte é um símbolo de atraso civilizacional, é com espanto que vemos o Deus que os homens criaram a exigir tal sacrifício, por vezes por razões tão fúteis como a apostasia e a blasfémia. B. Russel foi um verdadeiro pedagogo.

***

Antigo Testamento – É uma obra cuja leitura é recomendada pela Associação Ateísta Portuguesa (AAP). Estando na origem dos três monoteísmos ninguém ficará indiferente ao potencial de violência que contém. São particularmente significativos o Levítico e o Deuteronómio cujos horrores ultrapassam os preconizados pelos três outros livros que integram o Pentateuco.

Não foi por acaso que a Igreja católica proibiu a leitura da bíblia durante muitos séculos. Desde as contradições que encerra, até à fragilidade das afirmações científicas, há matéria suficiente para desconfiar de um Deus, se o houvesse, que fosse tão violento e reduzisse a criação humana a um mero trabalho de olaria. Mas o que mais perturba, mesmo quem tem convicções firmes sobra a natureza humana do AT, é o seu carácter misógino, que está na origem de séculos de sofrimento por metade da Humanidade –as mulheres. Veja-se, aliás, que a libertação da mulher foi conseguida, onde foi, no último século e sempre contra a vontade das religiões que a reduzem à menoridade, com especial violência no Islão.

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Deus não é grande – Christopher Hitchens procura demonstrar através deste livro como a religião envenena tudo. Foi um ateísta militante que deu uma notável conferência, uma das últimas, na Casa Fernando Pessoa, em Lisboa.  Este notável jornalista, escritor e crítico literário dedicou uma parte importante da sua vida a combater as religiões.

Talvez nenhum outro ateu tenha sido tão inflamado na defesa do ateísmo, uma opção filosófica que, contrariamente ao cristianismo e islamismo, não costuma ser prosélita.

A sua inteligência e sagacidade fez do livro «Deus Não É Grande» («God Is Not Great», no original), um libelo implacável contra a influência deletéria das religiões. Era temido pela rapidez do raciocínio e argúcia argumentativa.

Este livro é, para os ateus, uma referência que estimula o estudo das religiões. Hitchens, baseado nos textos ditos sagrados, documenta à saciedade como Deus é um reflexo do nosso medo da morte e desmascara, de forma inexorável, os dogmas responsáveis pela violenta repressão sexual e pelos caminhos ínvios que a humanidade, refém desses dogmas, percorreu.

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O Conde de Abranhos – Eça de Queirós é um notável retratista. No Conde de Abranhos, mais do que a ironia, é o sarcasmo que domina a imagem impiedosa de uma figura do Constitucionalismo. Misto de biografia e de romance, Eça escreve a história privada de Alípio Abranhos e a sua ascensão social, num delírio de humor e escárnio com que cria uma figura de que todos os regimes, todos os países e todas as épocas têm um avatar.

A descrição do Conde de Abranhos, cuja origem se perde numa genealogia suspeita, entre relações adúlteras e a roda de crianças abandonadas de um convento, é uma sátira ao oportunismo de um medíocre bacharel em direito que passa por deputado e chega ao ministério.

Este exercício de humor corrosivo ficou como imagem de marca do grande romancista. A biografia deste político constitucionalista, pela pena do seu secretário e dedicado biógrafo, Z. Zagalo, é uma das mais demolidoras críticas com que Eça de Queirós criou mais um personagem da sua imensa galeria de retratados.

11 de Agosto, 2013 Carlos Esperança

DN – Suplemento Q – LER

Suplemento Q_o convidado. DN – 10_06_2013

Convidado como presidente da Associação Ateísta Portuguesa, deixo aqui as respostas que dei:

LER

Memorial do Convento é na obra do maior ficcionista português de todos os tempos a marca indelével do escritor que trago no meu devocionário há muitos anos, do escritor a quem sempre profetizei o Nobel da literatura e a quem o devemos.

Estou a reler o livro que me despertou para a leitura do enorme escritor, para a escrita do estilista que revolucionou a arte literária e elevou a ficção a um nível raramente atingido, neste livro, no Memorial do Convento, casando a beleza da escrita com o rigor da descrição.

É uma viagem na história, pela mão do erudito e observador atento da monarquia e da sociedade, no tempo da construção do convento de Mafra, quando a fé num milagre era mais eficaz para a gravidez da augusta rainha do que assiduidade  de D. João V a cumprir os deveres conjugais. Há personagens que vão resistir ao tempo, a todos os tempos, como Sete Luas e Sete Sois e tantas outras.

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Li «Velhos Marinheiros», de Jorge Amado, quando «A Morte e a Morte de Quincas Berro d’Água» e «Vasco Moscoso de Aragão Capitão de Longo Curso» ainda faziam parte do mesmo volume. Foi uma delícia percorrer S. Salvador da Baía, onde um dia, talvez influenciado por Jorge Amado, haveria de rumar.

Nunca mais esquecerei o boémio que prostitutas e amigos passearam pelas ruas de S. Salvador, já no seu caixão, a despedir-se dos botequins onde devorava aguardente e fazia amigos. O berro que lhe deu a alcunha, quando lhe trocaram a cachaça por água, ficou imortalizado na prosa humorada de Jorge Amado.

Também as peripécias de Vasco Moscoso de Aragão, que tinha comprado um título de capitão de longo curso, como hoje se compra em Portugal uma licenciatura, ficou célebre a  dar ordens para amarrar o navio que lhe coube comandar pela morte súbita do comandante. Foi o único navio que a ignorância do falso comandante salvou do vendaval que varreu o porto de S. Salvador da Baía.

***

O Fim da Fé, Sam Harris – É um livro de um ateu militante que revela a origem humana das religiões e desmascara o potencial belicista dos livros sagrados. Nele, Sam Harris tem a coragem de denunciar o terrorismo islâmico não como obra de fanáticos mas como maldade intrínseca do mais implacável dos monoteísmos.

Mostra como um livro da Idade do Bronze, criação da sociedade tribal e patriarcal, deu origem aos três monoteísmos e perpetua valores desse período histórico. Fica a saber-se que não foi Deus que criou os homens mas estes que criaram Deus, à sua imagem e semelhança. Daí que o carácter xenófobo, violento, vingativo e misógino seja uma característica do Deus abraâmico que é comum às três religiões do livro. Quem ignora o sangue vertido em nome desse Deus cruel fica a saber como a humanidade sofreu por ser habituada, desde criança, a crenças que não resistem ao escrutínio da razão e se desmorona com os inúmeros exemplos de versículos que cita e dos factos históricos a que alude.

10 de Agosto, 2013 Carlos Esperança

DN – Suplemento Q – OUVIR

Suplemento Q_o convidado. Hoje, DN

 

Convidado como presidente da Associação Ateísta Portuguesa, deixo aqui as respostas que dei:

OUVIR

Recordo Os vampiros, de Zeca Afonso, talvez pelo momento presente em que a crise do capitalismo encontrou a saída na fuga para a frente, sem reparar na angústia, medo e revolta que semeia com o ultraliberalismo a que, neste momento, quer condenar-nos, em Portugal, na Europa e no Mundo.

Vem-me à memória a primeira quadra: «No céu cinzento sob o astro mudo / Batendo as asas Pela noite calada / Vêm em bandos Com pés veludo / Chupar o sangue Fresco da manada». Não posso deixar de pensar no homem generoso que pôs o seu talento ao serviço dos seus valores numa dádiva constante de um sonhador, para quem a vida foi madraça, e que tanto deu recebendo tão pouco.

Ouvir Zeca Afonso é prestar homenagem a um grande cantor de intervenção que ajudou a mudar Portugal quando não se sonhava que, numa manhã de abril, nasceriam cravos nos canos das espingardas.

Pedra Filosofal – Este belo poema, de António Gedeão, atinge uma sonoridade especial na voz de Manuel Freire. Enquanto houver homens e mulheres para quem o sonho comande a vida, não deixará de ser ouvido. É um hino à liberdade que nos interpela e extasia os sentidos.

Gosto de ouvir a Pedra Filosofal, fechar os olhos e sonhar, porque sei que «sempre que um homem sonha, o mundo pula e avança, como bola colorida, entre as mãos de uma criança». Quando o mundo volta a ser a preto e branco, quando a realidade quotidiana nos empurra para a melancolia, valem-nos os poetas e cantores para descobrir, por entre as nuvens pardacentas das noites escuras, o raio de luz que desponta para iluminar a aurora dos dias.

Ouvir música, como a referida, e ler um bom livro apazigua e traz a serenidade a que todos devíamos ter direito.

10 de Agosto, 2013 Carlos Esperança

DN – Suplemento Q – VER

Suplemento Q_o convidado. Hoje, DN

Convidado como presidente da Associação Ateísta Portuguesa, deixo aqui as respostas que dei:

VER

Casablanca é o filme da minha geração

Sendo um filme romântico, fica para sempre a tensão dramática do tema, o desempenho notável de Humphrey Bogart e Ingrid Bergman e o dilema dilacerante entre a virtude e o amor, numa situação extrema onde o sacrifício do amor é cruel e obrigatório.

Só um filme em que o interesse do tema, a realização exemplar e o sublime desempenho dos atores se conjugam para documentar um dos mais dramáticos momentos da história da Humanidade, podia resistir aos 70 anos que já leva a cativar sucessivas gerações de cinéfilos e espectadores comuns.

Rever Casablanca é uma viagem ao Governo de Vichy e à demência nazi que apavorou a humanidade, particularmente a Europa, e prestar homenagem à resistência heroica que uniu as mais diversas correntes democráticas contra o esmagamento das liberdades pelo extremismo ideológico do nazismo que reuniu o que pode haver de pior em qualquer ideologia: o imperialismo, o racismo e a xenofobia, numa orgia de horror, violência e morte.

Citizen Kane ou «O Mundo a Seus Pés» é um filme de suspense com uma realização soberba de Orson Welles. A palavra “Rosebud“, com que começa, pronunciada imediatamente antes da morte do magnate do jornalismo, acerca do qual se desenrola o filme, perdura pela vida de quem o viu e sentiu necessidade de o rever. «Rosebud» é a palavra enigmática, quiçá, algo que Kane perseguia e não conseguiu, talvez o fracasso derradeiro de quem subiu ao cume do poder, tornando-se um dos homens mais ricos do mundo, e algo lhe escapou.

Citizen Kane é um filme obrigatoriamente presente na história do cinema. Desde a direção artística à banda sonora, da fotografia à montagem, tudo se conjuga para a apoteose do ator protagonista, o próprio Orson Welles, que interpreta a vida de um homem pobre cuja indiferença alheia o levou a construir uma fortuna colossal e um poder imenso.

 

27 de Maio, 2013 Carlos Esperança

Aquilino Ribeiro – um escritor que fez escola

Há cinquenta anos faleceu Aquilino Ribeiro, o maior prosador da língua portuguesa da primeira metade do século XX.

A mãe quis destiná-lo ao sacerdócio e foi no seminário que aprendeu decerto o encanto da língua e o desencanto da fé. Aliou a carreira de êxito literário à intervenção política e ao combate cívico, primeiro pela República, depois contra a ditadura.

Sou suspeito a falar de Aquino, que li muito novo, onde encontrei palavras que do meu avô materno e pessoas iguais às que eu conheci. Escreveu sobre gente e paisagens que me eram familiares e o Malhadinhas era a síntese de vários aldeões vivaços e atrevidos que me tratavam por menino por não ter pergaminhos para me dizerem, ora oiça, meu fidalgo.

Escreveu «Quando os Lobos Uivam» num tempo em que as feras andavam à solta e os Tribunais Plenários ao serviço da canalha fascista. Com Aquilino vivi as histórias do volfrâmio de que o meu avô falava e apreendi que as sotainas não escondiam a virtude apregoada e que «Anda(va)m Faunos pelos Bosques».

Manejou a pena e a escopeta, com igual entusiasmo, ao serviço de uma República laica e democrática. A paixão da escrita e da liberdade foram o desígnio do beirão moldado pela rudeza das terras onde nasceu, donde resgatou para a literatura os regionalismos e para a sátira os costumes. A prosa fez dele o estilista que o salazarismo quis esconder e a democracia esqueceu mas a riqueza da sua escrita moldou os que aprenderam nele o gosto pela língua e o amor à liberdade.

Só em 2007 a Assembleia da República decidiu trasladar os restos mortais de Aquilino para o Panteão Nacional, perante o azedume dos que nunca o leram e viam no maçon e, quiçá, carbonário, um expoente da inteligência, cultura e espírito revolucionário.

No 50.º aniversário da sua morte, penso em « Príncipes de Portugal. Suas grandezas e misérias», e é a mestre Aquilino que agradeço ter-me ensinado a conhecer e a amar as terras e gentes da minha infância, a língua que escrevo do povo que sou e a irreverência que me acompanha.

As bombas do jovem anarquista detonaram sem estragos de maior mas a prosa deliciosa anda por aí à espera de quem frua o prazer de a resgatar das «Arcas Encoiradas» para visitar A Casa Grande de Romarigães, descobrir «S. Bonaboião, Anacoreta e Mártir»,e tantas outras pérolas da literatura portuguesa.

Mestre Aquilino, cinquenta anos depois da sua morte, é ainda o herói desconhecido e a referência culta que me conduziu até Saramago.

Foi ainda, através dele, que o clero começou a perder o poder e o respeito.

30 de Março, 2013 Carlos Esperança

A missa na aldeia (Crónica)

Os sinos da igreja intimavam os paroquianos. O templo enchia, homens à frente, mulheres atrás, os «ricos» na primeira fila, sempre conforme à hierarquia e tradição. Uns minutos antes das nove ouvia-se a moto do padre Farias que já tinha despachado a missa das oito em Casal de Cinza e ainda o esperava outra paróquia.

Entrava sempre com ar mal disposto de quem sentia o penoso serviço de Deus como condenação, em paróquias pobres, de gente rude, sem instrução nem banho. Ainda dois dias antes ali estivera a ouvir em confissão os pecadores mais aflitos ou mais avezados à desobriga e à eucaristia. Não tardariam a chamá-lo de novo para levar o viático a um desgraçado que já não descolava da cama nem para a santa missa.

O latim deixava estarrecidos os crentes pelo carácter esotérico que assumia aos castos tímpanos de quem até o português, para lá de algumas centenas de palavras, soava a latim ou parecia língua estranha criada por Deus para confundir os homens nas obras da Torre de Babel.

A homilia era breve e as ameaças repetidas. Trabalhar ao domingo enfurecia o Senhor, comer carne à sexta-feira era veneno para a alma de quem não tivesse a bula, a côngrua andava atrasada por alguns paroquianos, a trovoada tinha dizimado as searas, era certo, mas a culpa não lhe cabia a ele, padre Farias, que cuidava das almas, a moto não se movia a água nem o mecânico a consertava a troco da absolvição dos pecados. Mas o mais injurioso para Deus e arriscado para a alma era trair a castidade pela qual a Santa Madre Igreja tanto zelava.

Recordo as pias mulheres, embiocadas no xaile e lenço negro, a debitar ave-marias, sem viverem o drama de D. Josefa que Eça descreve «toda sossegada, toda em virtude, a rezar a S. Francisco Xavier – e, de repente, nem ela soube como, põe-se a pensar como seria S. Francisco Xavier, nu, em pêlo».

Já não me surpreende que a Ti Beatriz, transida de frio e carregada de fome, de fé e de filhos, sempre com aquela tosse que irritava o padre e merecia das outras mulheres o diagnóstico de tísica, se debatesse com o outro drama da D. Josefa, de «O crime do padre Amaro», talvez em situações mais graves.

A bondosa D. Josefa juntava à nudez fantasiada do santo outro pecado que a torturava: «quando rezava, às vezes, sentia vir a expectoração; e, tendo ainda o nome de Deus ou da Virgem na boca, tinha de escarrar; ultimamente engolia o escarro, mas estivera pensando que o nome de Deus ou da Virgem lhe descia de embrulhada para o estômago e se ia misturar com as fezes! Que havia de fazer?”

A Ti Beatriz, alheia à metafísica, sofria a mesma consumição A tosse e a expectoração apoquentavam-na durante a eucaristia e o padre Farias já a ameaçara de lhe recusar o sacramento apesar da devoção com que cumpria os deveres canónicos e a regularidade com que paria um filho por ano.

Mal o corpo e o sangue do Cristo, em forma de alva rodela de pão ázimo, lhe tocavam a língua, logo a tosse e as secreções lhe acudiam à boca, parecendo acalmar à medida que o alimento espiritual aconchegava a mucosa gástrica, amansando o jejum e o catarro, seguindo o curso fisiológico.

Dita a missa, antes de destroçarem os paroquianos, o padre fazia avisos: pedia a quem encontrasse uma burra que informasse o dono, lembrava às mães que as crianças deviam ficar em casa se ganissem na missa, que qualquer cristão podia baptizar recém-nascidos em perigo de vida, in articulo mortis, sem necessidade de despachar um estafeta a exigir a sua presença, com risco de não estar ou de lhe minguar o tempo e a paciência.

Depois, enquanto o padre desaparecia sobre a moto, entre nuvens de pó, os homens ficavam a falar da vida, as mulheres regressavam a casa e os garotos enganavam a fome com uma bola de trapos.