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Igreja e Censura

Por

ONOFRE VARELA

Neste tempo de confinamento, preservando-me – e preservando os outros – de contágio do Covid-19, tenho ocupado o tempo a ler, a escrever, a pintar e a arquivar recortes de imprensa, alguns dos quais esperam arquivamento há cerca de 30 anos.

Um deles é uma folha do Jornal de Notícias da edição de 14 de Outubro de 1998, com ilustração minha, representando José Saramago tendo nas suas costas um bispo irritado. O texto dá conta da inquietação sentida pelo Parlamento Internacional dos Escritores (PIE) por ver a Igreja “a seguir os passos do islamismo radical”, relativamente ao modo como encarou a atribuição do Prémio Nobel da Literatura ao nosso escritor, alegadamente por ele ser um “comunista inveterado” e pela sua visão “ideologicamente orientada e anti-religiosa”. Em resposta à atitude da Igreja, Saramago aconselhou os bispos a “tratarem das suas orações e dos esqueletos escondidos nos armários da Igreja”.

Foi inevitável a comparação da atitude do Vaticano com a condenação de Salman Rushdie feita pelas autoridades religiosas islâmicas do Irão quando da publicação do livro “Os Versículos Satânicos” (1991). O PIE, com sede em Estrasburgo, denunciou a “cada vez mais frequente tendência da Igreja Católica para condenar obras artísticas e literárias” e interrogou: “Por que espera o Vaticano para criar, ele próprio, um prémio literário para recompensar escritores cuja inclinação ideológica seja pró-religiosa e conforme ao seu modo de pensar, uma espécie de Prémio Estaline da Santa Sé: o Prémio Vaticano de Literatura?”.

Constatando o crescimento de tendências fundamentalistas, não só no Islão mas em todas as religiões monoteístas, o PIE pergunta : “Pretenderá o Vaticano imitar a Universidade de El Hazaar, do Cairo, que submete todas as produções literárias a autorização de publicação prévia e que emite fatwas contra os escritores? Pretende voltar aos tempos do Index e do Imprimatur? […] Todos os que defendem a liberdade de pensamento e de criação podem legitimamente inquietar-se por verem a Igreja Católica seguir os passos do islamismo radical”. Já quando da edição dos Versículos Satânicos, a Igreja católica defendeu o islamismo (talvez numa atitude corporativa, de bons colegas no negócio da fé), alegando a “defesa da dignidade dos crentes”, pretendendo estabelecer uma confusão estratégica no entendimento dos consumidores de missas, referindo a obra como uma “gratuíta distorção”. O PIE defendeu que a literatura é, na sua essência, uma distorção do real, e manifestou a sua inquietação porque “estes ataques não visam apenas, esta ou aquela significação, mas a própria possibilidade de representar a arte da ficção em si mesma, instaurando um crime inédito: o crime da literatura”. E concluiu: “A liberdade religiosa não pode afirmar-se contra a liberdade de pensar e de criar, sem a qual não há democracia possível”.

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

OV