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  • 12 de Maio, 2018
  • Por Carlos Esperança
  • Literatura

Duas mulheres, dois gestos de heroísmo silencioso (Crónica)

A brutalidade da violência contra mulheres, perpetrada por tribunais islâmicos, de que a condenação à morte por lapidação, em caso de adultério, é apenas a ponta do icebergue da crueldade atávica, aparece com medonha regularidade referida na comunicação social.
Entre a indignação e a revolta vêm-me à memória, vá lá saber-se porquê, dois transplantes de órgãos ocorridos nos Hospitais da Universidade de Coimbra, ambos no ano de 2001.

1 – Num qualquer dia de abril os médicos removeram uma fração de fígado de uma mulher saudável. Não foi divulgado o nome nem a idade. Foi apenas uma mulher com muito amor, autora de um gesto nobre, paradigma encantador a dar conteúdo à palavra Mãe. Sem hesitações. Sem medo. Determinada. Serena. Abnegada.
Muito perto, noutra cama, esperava o pedaço de fígado da dádiva uma criança para quem a porção de víscera era condição de sobrevivência.
No sofrimento foi possível a generosidade da mãe; na angústia a esperança da filha; na agonia a vida de uma criança.
É uma história de amor verdadeiramente visceral. É um grito de esperança a ressoar numa vida que não desistiu. É um hino de solidariedade escrito pela mãe que repetiu o parto e renovou a vida, poema de sangue escrito a bisturi com versos feitos de carne cosida com linha.
O tempo não será mais a medida destas vidas. Cada minuto foi uma centelha de eternidade. É preciso que os deuses tenham ensandecido para não recompensarem o gesto.
E nós, embevecidos com o milagre da cirurgia, nem nos damos conta do milagre maior que é o amor, sentimento que julgávamos já perdido algures entre a livre circulação de mercadorias e a acumulação contínua do capital.
Ficámos a saber que na bolsa de valores da consciência humana ainda há ações que valem a pena, porque são imunes aos humores e rumores do mercado, porque resistem à cotação do dólar e ao preço dos combustíveis fósseis, porque não dependem de ciclos económicos nem de jogos de poder.
Foi há mais de dois anos. Que será feito das vidas da mãe e filha esquecidas no turbilhão de escândalos e intermináveis guerras? Excetuando o arquivo da unidade de transplantes não é fácil que alguém as recorde. A memória regista mais facilmente o que há de pusilânime e fere a inteligência. E a maternidade é um ofício ancestral que se faz de graça e com naturalidade.

2 – Em outubro, outra mulher saudável e ainda jovem doou um rim. Um ato simples, apenas o risco assumido da própria vida na coragem de um gesto decidido. À espera, noutra cama, estava o filho.
Dentro de cada mãe há sempre uma mulher que emerge do estigma das milenárias burkas, qual águia presa ao chão sem poder voar, e que, libertando-se com um simples bater de asas, parte as grilhetas do medo e estilhaça a tradição.
Podem cobrir a cabeça de uma mulher com medo de que o pensamento a liberte, ocultar-lhe o corpo para lhe embotarem os sentidos, mas é a alma que alguns homens lhe querem aprisionada com receio de que desperte para o sortilégio da vida.
Quem é capaz de decidir do seu próprio sacrifício é porque encontrou o amor. Quem sabe do que é capaz o corpo, descobriu antes o que podia o espírito. A mãe que dá um rim ao filho doente é uma mulher corajosa.
Se a mulher foi criada a partir da costela de um homem ficou-lhe com a melhor. Quem lhe exige a submissão teme-lhe a inteligência ou duvida de si próprio. E nunca saberá amar.
Em Portugal, há apenas três décadas, a mulher precisava de autorização do marido para transpor a fronteira; a magistratura e a carreira diplomática eram-lhe inacessíveis; os direitos mais elementares eram-lhe recusados. Em nome da tradição e da moral.
Depois, foi uma longa e exaltante caminhada no país de Abril. De mãos dadas com os homens, seus irmãos. A caminho da libertação, homens e mulheres.
Hoje, um pouco por todo o mundo, subsistem sinistros guardiões de uma moral obsoleta qualquer, beatos implacáveis que sujeitam as mulheres à mais cruel e infamante das submissões. Quem lhes adivinha o rancor que os devora? Quem continuará a permitir-lhes a crueldade de que a mulher é a vítima predileta? Só a sofreguidão mística do paraíso pode conduzir à louca ambição de erradicar os infiéis, todos os infiéis, num proselitismo demente que atinge o êxtase na embriaguez da morte.
Em tais sociedades nenhuma mulher doará um rim. Não pode decidir como vestir-se e não lhe é permitido despir-se. Nem para doar um rim. Nem para amar. Nesses lugares a mulher não tem rins. Nem filhos. Simplesmente não existe, acorrentada pela violência da tradição e anulada pela atrocidade dos preconceitos.
Mas se à mulher é negado o direito à vida, o homem fica condenado à morte.
É por isso que precisamos de libertar-nos das burkas em que pretendem enclausurar-nos, da genuflexão a que querem submeter-nos, do livro único que querem impor-nos, dos lugares santos para que querem virar-nos. É a liberdade que é preciso conquistar e preservar. Para todos, homens e mulheres. Em todo o tempo. Em qualquer lugar.

Janeiro de 2004 – In Pedras Soltas (Ed. 2006 – esgotada) – Ortografia atualizada