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Dia: 20 de Abril, 2018

20 de Abril, 2018 Carlos Esperança

O primeiro transplante

Em 23 de dezembro de 1954, o cirurgião americano Joseph Murrey realizou o primeiro transplante humano – um rim doado por um irmão gémeo ao outro, que estava a morrer de doença renal. A generosidade fraternal foi compensada com mais de 8 anos de vida do irmão transplantado que constituiu família e havia de gerar duas filhas.

Os crentes mais devotos de então consideraram que se tratou de uma profanação do corpo e que os médicos interferiram numa prerrogativa de Deus. Nesse dia os homens deram mais um pequeno passo para a sua emancipação e Deus um enorme trambolhão para o seu descrédito.

O êxito da operação foi também a vitória sobre a omnipotência e a omnisciência divinas cuja credibilidade sofreu um rude golpe. A partir de então, milhares e milhares de vidas puderam ser prolongadas graças à ciência.

Quem acredita na vida eterna e na ressurreição da carne, há de perturbar-lhe a cabeça, no caso de a ter, o que sucederá no Vale de Josafat, entre Jerusalém e o Monte das Oliveiras, no dia do Juízo Final. O Deus deles, cruel e medonho, lá estará a julgar os vivos e os mortos, perante uma enorme confusão em que à gravidade dos problemas logísticos se juntará a berraria de quem pede a devolução do fígado, dos milhares que reclamam os rins próprios, daqueles que exigem de volta o coração ou procuram o esqueleto dividido por centenas de próteses após o acidente rodoviário.

Deus começa a ter problemas complicados. O melhor é desistir dessa ideia maluca da ressurreição e manter-se na clandestinidade a que se remeteu após o género humano ter decidido pensar.