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O Suave Milagre

Nota prévia: os factos relatados são verdadeiros. Vi a fotografia. Por razões óbvias, alterei o nome da personagem.

 

Adalbataberto apareceu-me, naquele dia, com ar circunspecto e algo enervado. Mais do que o costume. Sentou-se, mandou vir o habitual café com “cheirinho” e desatou a desabafar:

“Vê lá tu, que aqui há anos, o gastrenterologista fez-me uma endoscopia e detectou uma hérnia do hiato. Até tirou uma fotografia, e tudo. Logo na altura, disse-me que a hérnia, como todas as hérnias que se prezem, era irreversível. Avisou-me de que tinha de viver com aquilo, e receitou-me um medicamento para evitar o refluxo”. Sorveu mais um gole de café, e prosseguiu: “Ontem, fui fazer outra endoscopia. O médico, sim, o mesmo médico, garantiu-me que estava tudo em ordem. E a hérnia? perguntei. Que não, que não havia hérnia nenhuma. Ó sr. Doutor, mas não me disse que tinha uma hérnia do hiato? Disse. E que a hérnia era irreversível? Disse. Então, e a hérnia? Não faço ideia, não tem hérnia nenhuma. Então, como explica isto? Sinceramente, não tenho explicação.” Acabou de beber o café, e recostou-se na cadeira: “Como diria o outro: e esta, hein?” Foi a minha vez de falar: “É simples, acho eu. Tinhas uma hérnia, com fotografia e tudo. Era irreversível, mas desapareceu. O médico, ou seja, a ciência, não dá explicação. Pronto! Tens todos os requisitos para um milagre. Acho que devias sentir-te feliz.” Rematei no gozo. “Pois, mas esse é que é o problema. Imagina se alguém dá com a língua nos dentes, e algum padre vem a saber do assunto? Logo agora, que a Irmã Lúcia está na calha para a santidade, este milagre fazia-lhes cá um jeitaço do caraças, não achas? E eu é que me tramava, a aturar a padralhada toda!” Deixei sair uma gargalhada, ante a simplória preocupação de Adalbataberto: “Tem calma, pá. Tu és ateu, ninguém te passa cartão.”