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Dia: 19 de Julho, 2015

19 de Julho, 2015 Carlos Esperança

O Cume – Miséria e Cinco Orações Diárias – Memórias de uma aldeia católica

No tempo da minha meninice o Cume era uma pequena aldeia, sede da freguesia de Vila Garcia, que englobava as anexas Cairrão e Carapito. Tinha um apeadeiro de comboio no troço da linha da Beira Alta que liga a Guarda a Vilar Formoso, precedido pelo da Gata e tendo a seguir o de Vila Fernando.

A aldeia tinha água e luz, a primeira provinda exclusivamente de uma fonte de mergulho, donde jorravam excedentes para o bebedoiro do gado e para a presa onde as mulheres lavavam roupa, e a segunda, do Sol e das estrelas, refletida pela Lua, ou nascida na torcida dos candeeiros a petróleo e no pavio de candeias de azeite. Mesmo à Sagrada Família, que todas as noites viajava de uma casa para outra vizinha em perpétuas voltas pela aldeia, era o azeite que lhe iluminava as formas e a virtude que as famílias contemplavam através do vidro da caixa de cerejeira.

No verão as coisas complicavam-se, tendo as mulheres de deslocar-se à ribeira, para lavarem a roupa, a dois bons quilómetros de distância. Quanto ao gado lá se ia repartindo a água da fonte, bebendo de um balde, à tardinha, primeiro as pessoas que o quisessem e, a seguir, os animais, balde de novo mergulhado para trazer nova água que, ora uma burra, ora uma vaca, sobretudo esta, rapidamente esvaziava. Se entretanto acontecia alguém mais querer dessedentar-se, o balde era primeiro enxaguado, essa água vertida numa pia para galinhas, para aproveitar, e, só depois, outra vez cheio, posto à disposição do sequioso que ali mergulhava a boca e o nariz, até mais não querer, dispensado do assobio que estimulava as vacas. As pessoas tinham precedência sobre os animais.

O forno cozia uma vez por mês, desamuado sucessivamente por todos e com a quantidade de lenha fornecida num sistema que sempre funcionara, na razão direta do número de pães de cada família, marcados para evitar confusões. Os tabuleiros vinham de casa onde fora peneirada a farinha, amassada, fermentada e tendida. Chegados ao forno abendiçoava-se a massa que a oração faria crescer, e punha-se a cozer.

A criança que eu era no fim da década de quarenta recorda três homens a quem reconhecia importância – o Presidente da Junta, o Senhor do Correio e o sacristão. Hoje havia de julgar o alfaiate ou o merceeiro de maior relevância social mas, então, no meu reduzido universo de valores, com o Senhor Pároco a viver noutra freguesia, sem a obrigação de pedir a bênção a quem quer que fosse, nem a de beijar mãos – por não ser hábito doméstico e gozar do privilégio de ser filho da professora e de um funcionário de finanças –, eram eles os mais importantes.

O Presidente da Junta era o Senhor José Simão. Tratava da horta como os outros, mas era presidente, o primeiro que eu conhecera. A professora precisava da sua assinatura no recenseamento escolar, mas era ele a deslocar-se à escola, acompanhado da mulher, que lhe desenhava o nome, pois ele não o encarreirava – segundo ambos alegavam –, apesar do treino a que se submetera, começando a derrapar no José, a que sempre faltava o ‘o’ ou o ‘s’ e, invariavelmente, o acento, para depois se lhe varrer o ‘i’ ou o ‘m’ e aquele endiabrado til que exornava o complicado Simão. Pronto, assinava a mulher, arrumava-se a questão, faça favor de desculpar, minha senhora, o seu marido vem sexta-feira, ainda bem, nesta altura do ano sai da repartição a horas do comboio, são dezasseis tostões, não precisa de vir a pé, são para riba de duas léguas, ainda chega de dia, até amanhã minha senhora.

Um casal simpático aquele, o único que cultivava linho na aldeia e que me deu a oportunidade de ver como uma frágil planta se transforma em fio. Admirei a barrela e a cardação, vi o que fazia a espadela e contemplei a planta que fora a acabar fiada na roca e dobada.

O do Correio era o Senhor António Bernardo a cuja casa eu ia levar as cartas e perguntar diariamente pelo correio. Era um camponês que tinha um braço aleijado a que devia uma pequena reforma e o retrato de um jovem de vinte e poucos anos vestido de sargento, como compensação do ferimento na Primeira Grande Guerra. Era o único lavrador da aldeia com três vacas, integralmente pagas, uma burra e algumas ovelhas.

Presidia por tradição, que o alvará da Câmara sempre confirmava, aos atos eleitorais.
Um dia acompanhei a minha mãe ao sufrágio durante uma forte chuvada, o que levou o Senhor António Bernardo a perguntar respeitosamente por que se tinha incomodado, com um tempo daqueles, coitado do menino, se até já a tinha descarregado, informação cujo alcance me escapou, limitando-se a recolher o voto e a pousá-lo sobre a mesa. Percebi que já não era preciso introduzi-lo, pois já lá estava, não aquele, que era impossível introduzir antes de chegar, mas outro igual, que tinha o mesmo valor e igual intenção. Disse mesmo que já estavam descarregados todos os eleitores mas que a lei obrigava a manter a porta aberta, e a lei é a lei, não acha Senhora Professora, e para a respeitar e fazer respeitar ali estava ele, ninguém melhor que ele, até já fora Presidente da Junta antes do José Simão, por isso só quando a hora canónica chegasse é que se fechava a porta e, nessa altura, é que pediria à Senhora Professora para preencher uns papéis que era preciso, que ele não se ajeitava e os que estavam com ele ainda menos, no tempo deles não havia escola, o trabalho não era muito, todos tinham votado, graças a Deus, mesmo o Germano que Deus tem, se fosse vivo também não deixaria de votar ou, se o tempo estivesse assim e andasse com o gado, não se importava que nós o descarregássemos.

Era um bom homem, a quem o Senhor Prior confiava a orientação do terço, designado por mês de Maria, que em maio todos os dias tinha lugar na aldeia, a mando de Nossa Senhora e a rogo da Irmã Lúcia, pela conversão da Rússia. Devia ser por igual delegação de poderes que lhe cabia a orientação da novena que todos os anos, quando a canícula fustigava o renovo, despovoava a aldeia para ser rezada junto a uma pia que ficava a mais de um quilómetro, na quinta do Senhor Morgado. Lembro-me bem dessas peregrinações, que acompanhei várias vezes com devoção, e da eficácia demolidora de uma dessas novenas que transformou o normal pedido de chuva numa trovoada devastadora com os crentes a queixarem-se do excesso de fé, da molha e dos prejuízos.

O sacristão era coxo. O nome verdadeiro encontra-se, se acaso eu o soube, arquivado na desmemória de sexagenário. Todos o tratavam por Ti Mijinhas.

Sempre julguei apanágio do múnus o cheiro dele, antes de saber que o efeito conjugado da incontinência urinária e da relutância ao banho era a causa necessária e suficiente de um odor que as pituitárias da época, muito mais conformadas e cristãs que as de hoje, assinalavam com nauseada tolerância.

Era ele que ajudava o Senhor Pároco a paramentar-se, cargo que à época conferia algum prestígio, se encarregava de agitar a campainha quando o Senhor Prior passava com a hóstia em frente do Santíssimo, no sentido ascendente e no descendente, estridente toque que me levou muitas missas e cuidada averiguação a localizar. Eu julgava que era o efeito da passagem da hóstia à frente do sacrário que produzia o som, qual célula fotoelétrica, antes de ter descoberto que o mesmo se devia à campainha com quatro chocalhos cruzados, agitada pelo sacristão, a razoável distância, no momento adequado das exéquias.

Mas era a eucaristia que enobrecia o homem pela singularidade das funções. Cabia-lhe acompanhar com a patena a trajetória das hóstias que do cálice eram transportadas pela mão do oficiante até à língua dos devotos, espécie de rede protetora a impedir que o corpo de Cristo caísse desamparado por alguma manobra mais infeliz ou desajeitada do oficiante, mera precaução para um eventual acidente nunca registado. Nesses momentos até parecia que a perna mais curta do coxo, que o sacristão sempre fora, se adequava melhor à função do que se ambas lhe tivessem crescido iguais.

Era ele que transportava a caldeirinha da água benta com o hissope mergulhado à espera de que o Senhor Prior o sacudisse vigorosamente sobre os paroquianos para os aspergir e abençoar. Cabia-lhe ainda acender as velas e apagá-las, guardar as alfaias, dobrar e arrecadar os paramentos. Os trabalhos menos nobres, a limpeza da igreja, o tratamento dos paramentos, a mudança da roupa aos santos e outras tarefas menores, de grande interesse para o culto e razoável benefício para a alma, eram destinados a mulheres que disso se encarregavam em obscura dedicação.

Já depois de dita a missa, enquanto se rezavam as últimas orações – uma espécie de IVA para prolongar o santo sacrifício –, lá ia o Ti Mijinhas de bandeja em punho pedir para vários fins, conforme o domingo. O mais usual era o ‘costolado’ da oração que anos depois a minha mãe me esclareceria tratar-se do “apostolado da oração”, mas este pequeno desvio do léxico não alterava o valor do óbolo nem confundia a devoção daquela gente pobre.

Fica fora desta crónica a Ti Ismelindra, corruptela de Ermelinda, nome que ela própria desconhecia ter, parteira voluntária a cujo currículo adicionou dois irmãos meus que naquela aldeia encontraram a nossa mãe na altura de virem ao mundo.

Mas é sobretudo uma pequena população analfabeta que resistia à miséria e a cinco orações diárias, que circulava descalça sobre a neve e a geada, por cima de silvas e tojos, que nunca usou relógio ou tomou banho, que pedia brasas para acender o lume, cujas casas eram muitas vezes de terra batida e de paredes sem reboco, que, para se poder vestir, vendia os presuntos do porco de criação, os queijinhos que fazia, pequenos rolos de manteiga enfeitados com o cabo de uma colher, os molhos de agriões e meruges colhidos nos regatos, os ovos, e calcorreava duas léguas para percorrê-las de novo no regresso com o pecúlio rendido na praça da Guarda, é essa população que um dia hei de recordar, menos na fome que a consumia e nas carências proteicas que lhe dilatavam o ventre dos numerosos filhos, mas na sua solidariedade inexcedível e no espírito esmoler que a exornava. Talvez um dia.

In Pedras Soltas – Ed.2006 (Esgotada)