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  • 24 de Maio, 2015
  • Por Carlos Esperança
  • Literatura

SODOMA – Crónica de fim de semana

Naquele tempo, andava Deus na divina ociosidade a que se remeteu depois de ter criado o Mundo, quiçá arrependido da forma inventada para que os animais se multiplicassem, a ruminar desculpas por ter incluído a macieira quando fez as plantas, sabendo que sem Eva e sem maçã estaríamos todos, ainda hoje, condenados ao Paraíso e ao tédio.

Tinha acontecido o dilúvio e a engenharia ousado construir a torre de Babel. O primeiro foi um susto bem pregado e uma experiência radical e a segunda um enorme fracasso e uma extraordinária confusão.

Pelo Vale de Sidim, próximo do Mar Morto, estendiam-se cinco cidades com diferentes níveis de progresso, riqueza e bem-estar. Sodoma e Gomorra eram mais desenvolvidas e tinham um invejável nível de vida, graças ao sector terciário que, então, não tinha ainda designação adequada por não haver economistas encartados. As outras, Admá, Zebolim e Bela eram menos importantes, a acreditar no Génesis, o primeiro livro do Pentateuco.

Vinha do Norte o ar quente que, depois de percorrer e acariciar as águas do mar, entrava suavemente em Sodoma para animar os corpos, inebriar a alma e soltar a fantasia de que o mundo era capaz, na sua difícil infância, e produzir um indizível arrebatamento.

Homens e mulheres contavam instantes do tempo breve que o expediente dos escritórios lhes tomava, para cultivarem, a seguir, todos os prazeres febrilmente sonhados. Mesmo nas horas de trabalho não se coibiam de ser felizes e soltarem a imaginação. Os afazeres que o desenvolvimento tecnológico se tinha encarregado de aliviar eram cada vez mais um mero resquício para justificar a maldição bíblica que viria a ser criada com efeitos retroativos. O trabalho era um bem muito escasso e, dele, ninguém se quisera apropriar.

Como os livros ainda não tinham sido inventados, todos liam o livro da vida através dos sentidos. Tinham-se habituado a usar o corpo e a dar-lhe alma. Eram desmesuradamente felizes a ponto de esquecerem Deus e os seus ensinamentos, as ameaças e maldições, o sofrimento e a cultura que o inventara. E, porque eram felizes, não os atingia a doença, a fome, o medo ou a guerra.

Imagina-se o seu grau de felicidade pela intensidade da cólera divina, que enviou o fogo que destruiu Sodoma e, com ela, as outras cidades, e, com os adultos que se divertiam, as crianças, que ainda não sabiam folgar, e também os velhos que tinham esquecido já os divertimentos, se algum dia os conheceram, e, talvez, algum anjo que tivesse tentado pôr termo ao pecado e acabou violado, chamuscadas as penas no desejo e esturricado, também ele, nas labaredas, vitima do “fogo e enxofre descido do céu”.

Ao longe, Abraão assistira ao espetáculo que o seu Deus pirómano lhe serviu à hora da sesta, tirando moncos do nariz, enquanto Loth, seu sobrinho, por bambúrrio da sorte ou por morar nos subúrbios, se esgueirava com as filhas e a mulher, tendo esta olhado para trás, apesar da recomendação divina em contrário, e sido transformada em estátua de sal, por ser nela maior a curiosidade do que a obediência.

Para dizer alguma coisa ou por se ter arrependido do fogo que ateara ou, somente, para criar factos que dessem conteúdo ao Êxodo, ao Levítico e a outros escritos, fez Deus, a Abraão, umas promessas que acabariam por dar origem a Israel, muito tempo depois, e dado a Jacob e aos seus 12 filhos o Egipto para se instalarem e cumprirem uma profecia.

Sodoma ficou na memória oral dos povos pelos hábitos sexuais de uma escassa minoria. Conhecendo-se hoje melhor Deus e os seus humores, a fé e os preconceitos, a devoção e a sua intolerância, somos levados a crer que seriam deliciosas as vitualhas, capitosos os líquidos, refinados os hábitos, agradáveis as relações, enfim, felizes os seus habitantes, a ponto de Deus perder a paciência e ter sido tomado por aquela cólera que o celebrizou.

Terá sido Loth o autor do boato a que se deve o verbo criado a partir do nome da cidade perdida ou um qualquer viandante, saído antes do fogo, ávido de agradar ao algoz.