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Deus – um falso escritor

Texto da autoria de Sam Harris

(Enviado por Paulo Franco)

A situação em que nos encontramos é esta: a maioria das pessoas do mundo está convencida de que o criador do universo escreveu um livro. Ora, por azar, há muitos desses livros à mão de semear, cada qual reivindicando exclusivamente para si o dom da
infalibilidade.

As pessoas tendem a organizar-se em facções tendo por base a aceitação dessa presunção, incompatível com todas as outras – e não em função da língua, da cor da pele, do local de nascimento ou de qualquer outro critério tribal. Cada um destes
livros insta os seus leitores a adoptar um conjunto de crenças e práticas, algumas das quais benignas, outras não. Mas todas convergem, perversamente, num ponto de importância crucial:
o «respeito» pelas outras religiões, ou pelos pontos de vista dos não crentes, não é uma atitude defendida por Deus. Embora todas as religiões tenham sido inspiradas, aqui e ali, pelo espírito ecuménico, qualquer tradição religiosa tem como elemento central a ideia de que todas as outras são meros equívocos ou, na melhor das hipóteses, perigosamente incompletas. A intolerância está assim na essência de todas as crenças.

Quando uma pessoa realmente acredita que determinadas ideias podem conduzir à felicidade eterna, ou ao tormento eterno, é incapaz de aceitar a possibilidade de as pessoas que ama poderem ser desencaminhadas pelas blandícias dos não crentes. A certeza quanto à próxima vida é simplesmente incompatível com a tolerância nesta outra.

Este tipo de observações levanta-nos, desde logo, um problema, já que criticar a fé de uma pessoa é actualmente um tabu na nossa cultura. Nesta matéria, liberais e conservadores chegaram a um raro consenso: as crenças religiosas estão claramente
para além do discurso racional. Criticar as ideias de uma pessoa sobre Deus e sobre a vida depois da morte é considerado politicamente incorrecto, o mesmo não acontecendo quando as suas ideias sobre física ou história são atacadas.

E tanto assim é que, quando um bombista suicida se faz explodir juntamente com um
sem-número de inocentes numa rua de Jerusalém, o papel que a fé desempenhou nas suas acções, invariavelmente, não é tido em linha de conta. Os seus motivos devem ter sido políticos, económicos, ou inteiramente pessoais. Mesmo sem a fé, as pessoas
desesperadas continuariam a fazer coisas horríveis. A fé é sempre absolvida, aqui e em toda a parte.

A tecnologia, porém, possui a faculdade de criar novos imperativos morais. Os progressos técnicos na arte da guerra conseguiram finalmente tornar as nossas diferenças religiosas – donde, as nossas crenças religiosas – contrárias à sobrevivência.

Não podemos continuar a ignorar que milhares de milhões dos nossos vizinhos
acreditam na metafísica do martírio, ou na verdade literaldo livro do Apocalipse´ou em qualquer outra dessas noções extraordinárias que foram incubando nos espíritos dos fiéis ao longo dos últimos milénios – porque os nossos vizinhos estão agora armados
com armas químicas, biológicas ou nucleares. Não há dúvida de que estes progressos assinalam o fim da nossa ingenuidade.
Palavras como Deus e Allá devem ter o mesmo destino de Apolo e Baal, caso contrário serão capazes de destruir o mundo.

Basta percorrer o cemitério das más ideias da humanidade por alguns minutos para verificar que tais revoluções conceptuais são possíveis. Vejamos o caso da alquimia: durante mais de mil anos exerceu um enorme fascínio sobre os seres humanos e, no entanto, hoje em dia, qualquer pessoa que se assuma seriamente como alquimista de ofício perderá a credibilidade para ocupar qualquer posição de responsabilidade na nossa sociedade.

A religião com base na fé terá de cair, também ela, no esquecimento.