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Dia: 5 de Abril, 2014

5 de Abril, 2014 Ludwig Krippahl

Teorias.

Por infeliz acidente histórico, “teoria” é a palavra que designa o nível mais alto do conhecimento humano: a teoria científica. Infeliz porque, durante um longo percurso, o termo acumulou muitos sentidos diferentes e, agora, quem quiser propor um qualquer conjunto de crenças como alternativa à ciência pode sempre apontar que a ciência “é só teorias”. Como se a ciência fosse equivalente, ou até inferior, aos disparates sem fundamento de coisas como o criacionismo, a teologia, as modas da new age e afins. Para desabafar sobre o erro destas alegações vou distinguir três tipos de produto da ciência e procurar o seu paralelo nas supostas alternativas.

Primeiro, a hipótese. A hipótese é uma proposição, uma expressão que pode ser verdadeira ou falsa. Pode ser “No princípio criou Deus os céus e a terra” ou “a massa do electrão é 1836 vezes menor do que a do protão”. Não interessa o tema. Há hipóteses em todos os sistemas de crenças, sejam ciência ou não, porque a crença, no fundo, é simplesmente a atitude de aceitar uma hipótese como verdadeira. Mas logo aqui há uma grande diferença entre a ciência, onde incluo a parte mais rigorosa da filosofia, e coisas como teologias, superstições e ideologias várias, onde incluo as partes mais vagas da filosofia, aquelas que facilmente se confundem com literatura, poesia ou má ficção. A diferença está na forma de encarar as hipóteses.

Do lado da ciência, as hipóteses são um ponto de partida. São matéria prima para desbastar, escavar e polir até encontrar algum cristal de verdade que resista à abrasão pelos factos. Do outro lado até evitam chamar-lhes hipóteses. São hipóteses à mesma, porque podem ser verdadeiras ou falsas. Normalmente até são falsas. Mas, para disfarçar, chamam-lhes dogmas, doutrina, revelação, intuição e essas coisas. Desse lado da cerca as hipóteses não são um ponto de partida e muito menos algo que possa rejeitar ou corrigir. São a Verdade. Algo perante o qual o crente se ajoelha em veneração e para além do qual se recusa ir. Esta é uma grande diferença entre a ciência e o resto: o ponto final do percurso dessas alternativas corresponde ao ponto de partida no caminho que a ciência faz até ao conhecimento.

Outro tipo de produto da ciência é o modelo. Por exemplo, a tabela periódica, as equações das orbitais atómicas do hidrogénio ou a maqueta do ADN que Crick e Watson fizeram com arame e cartão. Um modelo não é uma afirmação nem uma hipótese. Por si só, uma tabela, equação ou maqueta não é verdadeira nem falsa nem é objecto de crença. A particularidade do modelo é representar parte da realidade com suficiente detalhe e objectividade para que dele se possa inferir um conjunto coerente de hipóteses concretas. Sendo uma descrição detalhada e objectiva, o processo pelo qual se infere hipóteses a partir do modelo não depende da crença ou fé de cada um. Há uma maneira bem definida de ler e interpretar a tabela periódica que não depende de acreditarmos naquilo que lá está escrito. É muito difícil encontrar modelos fora da ciência. A astrologia recorre a modelos, mas são os da astronomia. O criacionismo faz de conta que tem um modelo de como surgiu a vida na Terra, mas acaba por não ter qualquer descrição coerente com o mínimo detalhe. Tem apenas um conjunto solto de hipóteses acerca de Deus ter feito este milagre aqui e aquele ali. Em geral, é isto que se passa com as religiões e restantes superstições. Interpretam textos sagrados, discorrem sobre intuições e alegadas revelações e invocam a fé mas nunca produzem uma representação detalhada que enquadre sem ambiguidade as hipóteses em que acreditam. Não há nada na teologia ou em qualquer esoterismo com o detalhe e a objectividade de uma fórmula química, um mapa ou uma equação.

Finalmente, a ciência produz teorias. Ao contrário da forma como muitos usam o termo, uma teoria não é um bitaite. É algo muito mais profundo e até difícil de apreciar sem ganhar primeiro alguma familiaridade com este tipo de coisas. Uma teoria é um esquema gerador de modelos. É uma estrutura rigorosa de conceitos e relações que especifica que modelos são possíveis, e é de tal forma restritiva que, normalmente, basta saber alguns parâmetros para reduzir as possibilidades a apenas um modelo. Por exemplo, a teoria da relatividade permite-nos saber onde um asteróide vai passar décadas mais tarde apenas observando a sua velocidade e posição (1). As teorias científicas são também muito abrangentes. Com a teoria da relatividade podemos modelar o movimento de planetas e estrelas, a trajectória de electrões num tubo de raios catódicos e até medir a perda de água no solo da Índia pelo efeito na órbita de satélites (2).

É um erro propor teologias ou misticismos como vias de conhecimento paralelas à ciência porque são meros vestígios de abordagens rudimentares. Admito que a crença nessas hipóteses possa ter valor subjectivo para algumas pessoas mas, por muito valor que tenham enquanto crença, como conhecimento não valem nada. Sem suporte na realidade, nunca passaram daquela fase especulativa inicial. Para organizar hipóteses em modelos detalhados é preciso testar e escolher com cuidado as que melhor correspondem à realidade. Senão, sempre que se entra em detalhes os erros tornam-se evidentes. O resultado é que, fora da ciência, as afirmações acerca da realidade ou são vagas demais para dizerem o que quer que seja ou são claramente disparatadas. E para encaixar os modelos em teorias que unifiquem aspectos da realidade tão diferentes como, por exemplo, galáxias e electrões ou baleias e vírus, é preciso uma compreensão profunda que só surge depois de séculos a corrigir erros e a rejeitar ideias falsas. Só então é que o que sobra começa a encaixar. Este percurso foi exclusivo da ciência. Não há nada fora da ciência com um palmarés tão grande de erros corrigidos. Não há nada fora da ciência que tenha ido tão longe. Por isso, não há nada fora da ciência que chegue a ter teorias. Se bem que o melhor que a ciência pode oferecer é, realmente, “só teorias”, as alternativas ficam todas muito atrás, sem passarem sequer das hipóteses.

1- Wikipedia, 99942 Apophis
2- NASA, NASA Satellites Unlock Secret to Northern India’s Vanishing Water

Em simultâneo no Que Treta!

5 de Abril, 2014 Carlos Esperança

PORTUGAL E O VATICANO

Por

João Pedro Moura

Um Estado deve ter relações diplomáticas com uma religião organizada em Estado?

Resposta: NÃO!

Porquê?

Pelas mesmas razões que o Estado não deve ter religião oficial, também é incoerente sustentar relações diplomáticas com uma caricatura de Estado, minúsculo e extremamente artificial, que faz da religião a sua razão de ser: o Vaticano.

Os Estados têm territórios, homens e mulheres que labutam, sector primário, secundário e terciário, enfim, toda uma actividade económica que caracteriza um Estado, um povo, uma nação…

Nessa perspectiva, os Estados interessam-se por manter relações diplomáticas, uns com os outros, na mira de firmarem pactos internacionais, relações económicas, culturais, turísticas, conhecerem, ao mais alto nível, o que é que os governos fazem, etc.

Neste sentido, actuam os embaixadores: fazem relatórios periódicos sobre o que se passa no país onde estão e remetem-nos para os seus governos; observam a política do país anfitrião; discernem oportunidades de investimento; promovem o país que representam, em suma, são embaixadores…

Ora, então, o que é que um Estado tem a haver ou a ver com o Vaticano???!!!

Nada!!! Absolutamente nada!!!

O Vaticano é um Estado de 0,44 km quadrados, artificialmente formado, composto por cerca de 700 homens e muito poucas mulheres (portanto, “país” machista e misógino), que vive da venda de selos, da colecta internacional proveniente das suas agências nacionais, de investimentos capitalistas internacionais e da entrada paga nalguns dos seus poucos edifícios.

O Vaticano não tem sector primário nem secundário nem terciário.

É o único Estado do mundo onde não nascem crianças.

Não tem turistas para visitar Portugal.

É um Estado governado por um monarca absolutista, que só não é hereditário porque… enfim…

O Vaticano é, apenas, a sede da ICAR…

O Vaticano é um artifício oportunista concedido pelo fascista Mussolini, no Tratado de Latrão, em 1929, para melhor seduzir o “bom povo” católico italiano. Fascismo e catolicismo… que melhor convergência!…

Como se uma determinada religião precisasse dum Estado artificial e supranacional para dirigir o negócio!…

Como se não pudesse dirigi-lo em edifício e regime legal nacionais!…

Portugal tem homens e mulheres, crianças que vão à escola e que se tornarão naqueles homens e mulheres, sector primário, secundário e terciário, turistas que vão visitar o estrangeiro, etc.

Consequentemente, o que é que Portugal tem a haver ou a ver com o Vaticano???!!!

O que é que o Estado português tem para relacionar com um “Estado” composto por um número insignificante de indivíduos que prosseguem uma determinada ideia de deus, como modo de vida???!!!

Compreendo que o núncio apostólico, em Lisboa, embaixador do Vaticano, esteja cá a tratar dos negócios da ICAR e a vigiar a excelência dos agentes nacionais na defesa da empresa divina de filial terráquea…

Compreendo que tal núncio remeta, periodicamente, um relatório para o presidente do conselho de administração do Vaticano, contando coisas de cá…

Mas, o que fará essa enormidade diplomática que é o embaixador de Portugal no Vaticano???!!! Alguém me poderá explicar?

Esse embaixador português fará relatórios sobre quê???!!!

Que interessam para quê???!!! Alguém conhece um cargo diplomático mais inútil? Alguém conhece melhor sinecura política?

 

5 de Abril, 2014 Carlos Esperança

A posse do embaixador do Vaticano em 2010

O discurso de apresentação das Cartas Credenciais do novo Embaixador de Portugal junto do Vaticano em 21 de outubro de 2010 foi um ato de bajulação pia, sem ética republicana e de manifesta subserviência, em nome de um país laico e democrático.

O embaixador Manuel Fernandes Pereira esqueceu-se de que representava o país e não um grupo de peregrinos e de que Portugal é um Estado laico e não um protetorado do Vaticano.

Para o Sr. Embaixador podia ter sido a maior honra pessoal e profissional da sua vida dirigir-se ao «Beatíssimo Padre», mas não o foi para todos os portugueses, sobretudo para os que lhe reprovavam o mal feito à humanidade com a teologia do látex, em países onde a SIDA dizimava populações, e nas posições em relação à contraceção, planeamento familiar, saúde reprodutiva da mulher, sexualidade e igualdade de género.

A alegada emoção do Sr. Embaixador com a canonização de D. Nuno Álvares Pereira, devida ao milagre obrado em D. Guilhermina de Jesus a quem curou o olho esquerdo, queimado com salpicos de óleo fervente de fritar peixe, foi para muitos portugueses um motivo de troça e não de comoção, por ter transformado o herói em colírio.

Ao recordar que «um Predecessor de [Sua] Santidade honrou Portugal, na pessoa do seu Rei, com o título de Fidelíssimo», lembrou quanto ouro custou a Portugal, que vivia na miséria, o título obtido por D. João V, o rei que mantinha a sua amante predileta, madre Paula, no convento de Odivelas. Devia ter-se esquivado a remexer no passado devasso e perdulário de Sua Majestade Fidelíssima, um dos reis que mais dinheiro dissipou e mais filhos bastardos legou ao reino.

O Sr. Embaixador não tinha o direito de se apresentar como «o intérprete da arreigada devoção filial do Povo Português à Igreja e a [Sua] Santidade …», por respeito ao pluralismo ideológico e à liberdade religiosa do País que o diplomata representava.

O que terão pensado os ateus, agnósticos, céticos, crentes de outras religiões, e mesmo católicos, do embaixador que se permitiu terminar o seu discurso solicitando ao Papa «que paternalmente se digne abençoar Portugal, os Portugueses e os seus Governantes e, se tal ouso pedir, a Embaixada, a minha Família e eu próprio»?

O discurso ofendeu os livres-pensadores com a linguagem beata e a falta de pudor com que, em ano do Centenário da República, o embaixador humilhou todos os portugueses que recusaram a bênção papal. A prédica foi uma oração rezada de joelhos em nome de Portugal, um ato de vassalagem e uma manifestação individual de quem preferia ganhar o Paraíso a defender a honra de Portugal.