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A missa na aldeia (Crónica)

Os sinos da igreja intimavam os paroquianos. O templo enchia, homens à frente, mulheres atrás, os «ricos» na primeira fila, sempre conforme à hierarquia e tradição. Uns minutos antes das nove ouvia-se a moto do padre Farias que já tinha despachado a missa das oito em Casal de Cinza e ainda o esperava outra paróquia.

Entrava sempre com ar mal disposto de quem sentia o penoso serviço de Deus como condenação, em paróquias pobres, de gente rude, sem instrução nem banho. Ainda dois dias antes ali estivera a ouvir em confissão os pecadores mais aflitos ou mais avezados à desobriga e à eucaristia. Não tardariam a chamá-lo de novo para levar o viático a um desgraçado que já não descolava da cama nem para a santa missa.

O latim deixava estarrecidos os crentes pelo carácter esotérico que assumia aos castos tímpanos de quem até o português, para lá de algumas centenas de palavras, soava a latim ou parecia língua estranha criada por Deus para confundir os homens nas obras da Torre de Babel.

A homilia era breve e as ameaças repetidas. Trabalhar ao domingo enfurecia o Senhor, comer carne à sexta-feira era veneno para a alma de quem não tivesse a bula, a côngrua andava atrasada por alguns paroquianos, a trovoada tinha dizimado as searas, era certo, mas a culpa não lhe cabia a ele, padre Farias, que cuidava das almas, a moto não se movia a água nem o mecânico a consertava a troco da absolvição dos pecados. Mas o mais injurioso para Deus e arriscado para a alma era trair a castidade pela qual a Santa Madre Igreja tanto zelava.

Recordo as pias mulheres, embiocadas no xaile e lenço negro, a debitar ave-marias, sem viverem o drama de D. Josefa que Eça descreve «toda sossegada, toda em virtude, a rezar a S. Francisco Xavier – e, de repente, nem ela soube como, põe-se a pensar como seria S. Francisco Xavier, nu, em pêlo».

Já não me surpreende que a Ti Beatriz, transida de frio e carregada de fome, de fé e de filhos, sempre com aquela tosse que irritava o padre e merecia das outras mulheres o diagnóstico de tísica, se debatesse com o outro drama da D. Josefa, de «O crime do padre Amaro», talvez em situações mais graves.

A bondosa D. Josefa juntava à nudez fantasiada do santo outro pecado que a torturava: «quando rezava, às vezes, sentia vir a expectoração; e, tendo ainda o nome de Deus ou da Virgem na boca, tinha de escarrar; ultimamente engolia o escarro, mas estivera pensando que o nome de Deus ou da Virgem lhe descia de embrulhada para o estômago e se ia misturar com as fezes! Que havia de fazer?”

A Ti Beatriz, alheia à metafísica, sofria a mesma consumição A tosse e a expectoração apoquentavam-na durante a eucaristia e o padre Farias já a ameaçara de lhe recusar o sacramento apesar da devoção com que cumpria os deveres canónicos e a regularidade com que paria um filho por ano.

Mal o corpo e o sangue do Cristo, em forma de alva rodela de pão ázimo, lhe tocavam a língua, logo a tosse e as secreções lhe acudiam à boca, parecendo acalmar à medida que o alimento espiritual aconchegava a mucosa gástrica, amansando o jejum e o catarro, seguindo o curso fisiológico.

Dita a missa, antes de destroçarem os paroquianos, o padre fazia avisos: pedia a quem encontrasse uma burra que informasse o dono, lembrava às mães que as crianças deviam ficar em casa se ganissem na missa, que qualquer cristão podia baptizar recém-nascidos em perigo de vida, in articulo mortis, sem necessidade de despachar um estafeta a exigir a sua presença, com risco de não estar ou de lhe minguar o tempo e a paciência.

Depois, enquanto o padre desaparecia sobre a moto, entre nuvens de pó, os homens ficavam a falar da vida, as mulheres regressavam a casa e os garotos enganavam a fome com uma bola de trapos.