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Dia: 2 de Novembro, 2011

2 de Novembro, 2011 Ricardo Alves

A besta islamista voltou a atacar

A redacção do jornal Charlie Hebdo foi incendiada esta madrugada, aparentemente com um cocktail molotov. A razão é óbvia: o jornal satírico francês lança hoje nas ruas uma edição (capa aqui ao lado) destinada a assinalar a vitória dos islamistas do Ennahda na Tunísia e o anúncio pelo CNT de que as leis líbias se basearão na chária. A edição apresenta o título «Charia Hebdo» e um novo editor: «Maomé» (lui-même). A redacção ficou totalmente destruída.

A sátira e o riso são tão importantes para o meu ateísmo como o ajoelhamento e a prece o são para os religiosos. Se os muçulmanos e os católicos não entendem assim, eu explico melhor: atacar o Charlie Hebdo é como pôr uma bomba em Meca ou em Fátima. Ou melhor ainda: na Europa, o anticlericalismo é um direito. Pôr bombas por causa de umas caricaturas é próprio de bestas que se levam demasiadamente a sério. Ou de fascistas (neste caso, da variante islamofascista). Se não gostam de rir, vão rezar. 
P.S. Agradeço aos leitores que informem na caixa de comentários da localização de alguns dos quiosques e papelarias que vendem o Charlie Hebdo para que todos possamos, em solidariedade, adquirir um exemplar (ou mais…).
[Diário Ateísta/Esquerda Republicana]
2 de Novembro, 2011 Raul Pereira

Livros de Humberto Eco e Jesse Bering

Umberto Eco

Construir o inimigo e outros escritos ocasionais (Costruire il nemico e altri scritti occasionali), Gradiva, 2011, 312 pg. (****)

Construir o Inimigo

Eco tem um apetite intelectual bulímico e omnívoro, de forma que esta recolha de 15 textos apresentados em conferências ou publicados na imprensa durante a primeira década deste século, vai do Ulisses de James Joyce à Balada do Mar Salgado de Hugo Pratt, das cogitações de São Tomás de Aquino sobre a alma dos fetos às raparigas de formas generosas que adornam as televisões do Sr. Berlusconi. Alguns textos perdem pertinência e inteligibilidade quando retirados do contexto em que foram apresentados – é o caso de “Delícias Fermentadas” ou “O Grupo 63, 40 Anos Depois” – mas a lucidez e engenho de cada um dos restantes seria, por si, só razão para adquirir toda a colecção.

“Construir o Inimigo”, o ensaio que dá título à antologia, é uma brilhante súmula de, como ao longo da história, cada povo ou raça foi concebendo o Outro. Outro texto de grande pertinência e actualidade é “Absoluto e Relativo”, que distingue os vários tipos de relativismo que o debate público confunde (ou faz por confundir).

A ironia de Eco assoma em “Andar em busca de tesouros”, que retoma um tópico já abordado em O Nome da Rosa: a proliferação de relíquias sagradas pelas igrejas e mosteiros da Europa. Veja-se o caso do prepúcio de Jesus, cuja posse é reclamada, simultaneamente, por Roma, Santiago de Compostela, Chartres, Besançon, Metz, Hildesheim, Charroux, Conques, Langres, Antuérpia, Fécamp, Puy-en-Velay, Auvergne e Calcata, embora esta última tenha perdido essa pretensão desde 1970, quando o pároco comunicou o seu furto. Já os cueiros do Menino Jesus são reclamados apenas por Aquisgrana (Aachen), o que se compreende pois nos tempos bíblicos a fralda descartável ainda não tinha sido inventada – um Jesus do século XXI deixaria um rasto capaz de satisfazer todos os santuários. Constantinopla (hoje Istambul) pôde orgulhar-se de uma extraordinária concentração de relíquias, mas a IV Cruzada levou à dispersão da maior parte, incluindo “uma porção de esterco do burro em cima do qual Jesus entrou em Jerusalém” (se o prezado leitor tiver notícia do seu paradeiro queira alertar as autoridades eclesiásticas).

A antologia encerra com umas “Reflexões sobre o Wikileaks” bem mais penetrantes e iluminadoras do que a maior parte do que se tem escrito sobre o assunto: “Todo o dossier construído pelos serviços secretos […] é feito exclusivamente de material já de domínio público. […] Preguiçoso o informador e preguiçoso, ou de mente estreita, o dirigente dos serviços secretos, que julga verdadeiro apenas aquilo que reconhece”.

Jesse Bering

O Instinto de Acreditar, Temas & Debates, 2011, 284 pg. (****)

O Instinto de Acreditar

No debate sobre Deus que anima o meio intelectual anglo-saxónico (por cá o debate anda mais em torno de Jesus e da sua capacidade em levar o Benfica a campeão) é desconcertante que este livro tenha sido recebido pelo sector religioso com bonomia. Bering não é tão agressivo como Richard Dawkins e Christopher Hitchens, mas não é menos assertivo.

Bering introduz a coscuvilhice como explicação do apetite por criar deuses: a conjugação de duas características únicas da espécie humana – a capacidade de imaginar e prever o pensamento e comportamento dos nossos pares (a “teoria da mente”) e a linguagem (que nos permite relatar os comportamentos dos nossos pares) – fez do mexerico um eficaz “dispositivo de policiamento” da sociedade.

Mais eficaz ainda é imaginar que existe um deus que nos observa mesmo quando os nossos pares estão distraídos. “A atracção inebriante das crenças no destino, de ver sinais numa série infinita de acontecimentos naturais inesperados, a ilusão inabalável da imortalidade psicológica, e a assumpção implícita de que os infortúnios estão ligados a um qualquer plano divino […], tudo isso amadureceu no cérebro humano, [levando] os nossos antepassados a sentir-se e a comportar-se como se as suas acções estivessem a ser observadas, etiquetadas e julgadas por uma audiência sobrenatural”. Ao refrear o comportamento egocêntrico e impulsivo, “a ilusão cognitiva de um Deus omnipresente e atento foi útil para os nossos genes, e isso é razão suficiente para que a natureza mantivesse a ilusão bem viva no cérebro humano”.

— José Carlos Fernandes —

❖ Críticas publicadas na Time Out: Lisboa a 19 e a 26 de Outubro de 2011, respectivamente. Agradeço ao autor a autorização para as publicar também no Diário Ateísta.

2 de Novembro, 2011 Ludwig Krippahl

Ciência, metafísica e filosofia.

Uma coisa que me dizem muitas vezes é que não posso exigir “provas científicas” para alegações que, apesar de serem acerca de factos, se rotulam de metafísicas ou filosóficas. A ideia parece ser de que há jogos diferentes e, por simples troca de etiquetas, o que é claramente falso num passa a verdade indubitável no outro. Cientificamente, a hóstia fica na mesma. Metafisicamente, dá-se um milagre. Treta.

A filosofia procura a compreensão pelo raciocínio metódico e pelo diálogo racional e crítico. A ciência também, e aquilo que hoje chamamos ciência chamou-se, durante séculos, filosofia natural. Agora prevalece a ideia de que a ciência lida com o que é empírico e a filosofia lida apenas com o resto, como a ética e a metafísica. Mas esta ideia é errada. É certo que filosofia abarca muita coisa, dos silogismos de Aristóteles aos dramas de Sartre, da ironia de Kierkegaard à lógica matemática de Russell. Mas muito na filosofia – como a filosofia da mente, da linguagem e da ciência, só para dar alguns exemplos – depende de dados experimentais, exactamente como a ciência. Não há uma fronteira clara a partir da qual uma investigação filosófica passa a ser científica. Esta distinção deve mais a decisões subjectivas de nomenclatura do que a diferenças objectivas entre as abordagens.

A alegada diferença entre ciência e metafísica é outra ficção. Conveniente, mas fictícia à mesma. Consideremos, por exemplo, os postulados de Koch. Se um micróbio está presente nos organismos doentes e ausente nos saudáveis, se depois de purificado e inoculado num hospedeiro saudável este passa a manifestar a doença, e se depois pode ser isolado desse hospedeiro doente, então considera-se cientificamente estabelecido que esse micróbio causa essa doença. À primeira vista, é uma questão empírica e científica sem nada de metafísico.

Mas a relação de causalidade é metafísica. Empiricamente, a única coisa que se pode estabelecer é uma correlação. Sabemos que o micróbio está lá, depois o animal adoece, depois isolamos o micróbio, e assim por diante. Se a ciência, como apregoam, se limitasse ao empírico, nunca poderíamos dizer que o micróbio causa a doença. Apenas se poderia afirmar que, nos casos conhecidos, a doença se correlaciona com a presença do micróbio. Esta seria uma afirmação muito mais limitada. Por exemplo, nesse caso a ciência nunca poderia dizer o que me teria acontecido se não tivesse tomado a BCG e me tivessem inoculado com o bacilo da tuberculose aos 5 anos. Empiricamente, é impossível determinar o que teria acontecido quando não aconteceu. Não faz parte do conjunto de casos conhecidos onde se possa medir correlações. Mas a ciência responde que esse bacilo causa tuberculose e que, por isso, se eu não tivesse tomado a vacina e me tivessem inoculado com o bacilo eu certamente teria apanhado tuberculose. A causalidade, a explicação, o relato de como as coisas acontecem, tudo isso é científico e é metafísico. Se a ciência fosse estritamente empírica estaria limitada a listas de observações do género “este aparelho indicou aquele valor”. E talvez nem isso.

O que não quer dizer que estes aspectos metafísicos do relato científico não sejam testáveis. Não são directamente testáveis, porque a explicação e a causalidade, por si, não são nada que se possa observar. Mas são indirectamente testáveis porque explicações e relações entre causa e efeito implicam restrições àquilo que se espera observar. E a metafísica inclui o estudo de conceitos como o tempo e o espaço, que a ciência tem elucidado, e foi de um cepticismo metafísico que surgiu a epistemologia, o estudo de como podemos saber o que julgamos saber, e a filosofia da ciência, que é também uma ciência da ciência, visto que ninguém consegue fazer filosofia da ciência que valha qualquer coisa sem testar hipóteses contra o que observa os cientistas a fazer.

Invocar a desculpa fácil de que certa alegação não carece do fundamento que deveria ter por ser metafísica ou filosófica assume serem desconexos estes aspectos da nossa compreensão que estão interligados. Explicações, causalidade, relatos acerca do que a realidade é para além do que observamos, ou são um misto de filosófico, metafísico e científico ou não servem para nada. E, ao contrário do que muitos parecem crer, os rótulos de “metafísico” ou “filosófico” não têm o poder mágico de tornar disparates em verdades.

Em simultâneo no Que Treta!